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Frei Richard Rohr é um professor ecumênico mundialmente reconhecido, testemunhando o despertar universal dentro do misticismo cristão e da Perene Tradição. Ele franciscano da Província do Novo México e fundador do Centro de Ação e Contemplação (CAC) em Albuquerque, Novo México.

Ele nos brinda com suas meditações diárias que, ao logo do corrente ano, estão focadas no tema “Ação e Contemplação”. Partindo de sua tradição cristã franciscana e contemplativa, ele busca auxiliar o aprofundamento na experiência e na compreensão de Deus.

Selecionaremos uma das Meditações Diárias do Frei Richard para ser traduzida e disponibilizada neste espaço. As demais, assim como todo o conteúdo restante, podem ser encontradas em seu idioma original (inglês) na página do CAC.

Meditações diárias de Richard Rohr
- 2022 -

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30 de outubro de 2022

Semana quarenta e três

Não Violência

 

Um amor não violento*

(16 de outubro de 2022)

Richard Rohr reflete sobre os fundamentos espirituais da não-violência incorporados e ensinados por Martin Luther King Jr.

Parte da genialidade de Martin Luther King Jr. (1929-1968), inspirado nos ensinamentos de Jesus e Gandhi, foi ser capaz de mostrar às pessoas que a violência não era apenas imoral, mas também impraticável e, acima de tudo, fútil. A longo prazo, a violência não atinge seus propósitos declarados, porque apenas aprofunda a amargura de ambos os lados. Deixa os dois lados em um ciclo sem fim e impossível de ser interrompido por si só. Assim, faz-se necessário que alguma força neutralizante vinda de fora seja inserida para interromper o ciclo de violência, apontando uma nova direção.

King insistiu que a verdadeira prática não-violenta se baseia na visão espiritual. . . . Ele considerou axiomático que as atitudes de não-violência são finalmente impossíveis sem uma infusão de amor ágape de Deus, associada a nossa confiança nessa infusão. Ele definiu o amor ágape como a disposição de servir sem o desejo de reciprocidade, a disposição de sofrer sem o desejo de retaliação e a disposição de reconciliar sem o desejo de dominação. Este é claramente um amor Divino que o pequeno eu não pode alcançar por si mesmo.

Devemos viver no Outro e por meio dele para sermos verdadeiramente não violentos. [1]

Em um protesto no ano de 1960, contra a segregação em um restaurante em Arlington, Virgínia, o ativista da paz Quaker David Hartsough descobriu o poder de Deus no poder da não-violência:

Ame seus inimigos. . . faça o bem aos que te odeiam.

Eu estava meditando sobre essas palavras quando ouvi uma voz atrás de mim dizer: “Saia desta loja em dois segundos, ou vou enfiar isso no seu coração”. Virei-me para trás e vi um homem com o olhar de ódio mais terrível que eu já tinha visto. Seus olhos ardiam, sua mandíbula tremia e sua mão trêmula segurava um canivete – a cerca de meia polegada do meu coração.

Diante dele, tentei o meu melhor para sorrir. Olhando-o nos olhos, eu lhe disse: “Amigo, faça o que você acredita que é certo, e eu ainda tentarei te amar”. Tanto seu queixo quanto sua mão caíram. Milagrosamente, ele se virou e saiu da loja.

Essa foi a experiência mais poderosa dos meus vinte anos de vida. Confirmou minha crença no poder do amor, no poder da bondade, no poder de Deus trabalhando por meio de nós para superar o ódio e a violência. Eu tive uma profunda sensação de que a não-violência realmente funciona. Naquele momento, a não-violência tornou-se muito mais do que uma ideia filosófica ou uma tática de ação, cuja diferença já havia ocorrido na Índia de Gandhi. Tornou-se a maneira que eu queria me relacionar com outros seres humanos, um modo de vida, uma maneira de trabalhar para a mudança.

Minha resposta tocou o meu agressor. Ele me viu como um inimigo, mas, diante de minha resposta, acredito que me tornei para ele um ser humano. A humanidade em cada um de nós toca os seres. [2]

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(*) Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/a-nonviolent-love-2022-10-23/>.

[1] Richard Rohr, “Princípios de Não-Violência de Martin Luther King Jr.”, Oneing 10, no. 2, Não-violência (outono de 2022): 47, 48. A ser lançado na CAC Bookstore.

[2] David Hartsough com Joyce Hollyday, Waging Peace: Global Adventures of a Lifelong Activist (Oakland, CA: PM Press, 2014), 19, 20.

23 de outubro de 2022

Semana quarenta e dois

Amor e Justiça

 

O exemplo dos profetas*

(16 de outubro de 2022)

Para o padre Richard Rohr, a obra da justiça está enraizada na tradição profética das Escrituras Hebraicas. Ele diz:

O cristianismo deu pouca energia à profecia, que Paulo identifica como o segundo carisma mais importante para a edificação da igreja (1 Coríntios 12:28; Efésios 4:11). Muitas vezes, quando os cristãos falam sobre profecia, pensam que os profetas fazem previsões sobre o futuro. Na verdade, os profetas dizem exatamente o contrário! Eles insistem que o futuro depende muito do agora. Eles sempre anunciam a importância de se tomar uma decisão agora. Você pode seguir esse caminho e o resultado dos eventos o afastará ou poderá retornar a Deus, ao amor e à aliança. Isso não é prever o futuro, mas sim nomear o agora, o modo como a realidade funciona. O profeta abre a liberdade humana ao ousar dizer que as pessoas podem mudar a história mudando a si mesmos. Isso é extraordinário, e é tão verdadeiro para nós hoje.

Os profetas finalmente revelam um Deus que é “o Deus dos sofredores” nas palavras do filósofo judeu Martin Buber (1878-1965). [1] Eu gostaria de colocar desta forma: não é que saímos pregando mensagens duras e difíceis, e então as pessoas nos maltratam e nos marginalizam por sermos profetas (embora isso possa acontecer). Em vez disso, quando vamos às histórias dos profetas e do próprio Jesus, descobrimos que o padrão bíblico é exatamente o oposto! Quando nos encontramos feridos e marginalizados, e permitimos que esse sofrimento nos ensine, podemos nos tornar profetas. Quando experimentamos repetidamente a fidelidade, a misericórdia e o perdão de Deus, nossa voz profética emerge. Essa é a escola de formação. É aí que aprendemos a falar a verdade.

Os profetas sempre foram essas pessoas maravilhosas que iam a lugares feridos. Eles foram para onde estava o sofrimento, para as pessoas que estavam excluídas do sistema. Eles viam através das idolatrias no centro do sistema porque aqueles que são excluídos do sistema sempre revelam as crenças operacionais desse sistema. Falar a verdade por causa da cura e da integridade é então profético porque os “poderes constituídos” que se beneficiam do sistema não podem tolerar certas revelações. Eles não podem tolerar as verdades que os marginalizados – os quebrados, os feridos e os sem-teto – sempre revelam.

Estamos dispostos a correr o risco e nos tornarmos profetas? Não é que podemos pregar ou falar palavras duras e depois nos sentirmos justificados e justos quando somos excluídos. É que experimentamos algum nível de exclusão ou desgosto, e então temos a autoridade interior para pregar o que pode soar como palavras duras. Infelizmente, elas soarão como palavras muito duras e até injustas para pessoas que nunca estiveram no limite, ou no fundo, ou que nunca sofreram. Os profetas sempre trazem os sofredores para o centro.

A verdadeira ação espiritual (em oposição à reação) exige nossa própria transformação contínua e radical. Muitas vezes, exige que mudemos de lado para que possamos estar onde está a dor. Exige até mesmo uma nova identidade, como Jesus exemplificou em seu grande auto-esvaziamento (ver Filipenses 2:6–8). Em vez de acusar os outros de pecado, Jesus “se tornou pecado” (2 Coríntios 5:21). Ele se solidarizou com o problema em si, quase nunca com “respostas” específicas para os problemas das pessoas. Sua solidariedade e compaixão foram elas mesmas a cura. Essa era a estratégia dele e, portanto, é a nossa. Parece fraqueza, mas finalmente muda as coisas de maneira muito criativa, paciente e humilde. Tal solidariedade é aprendida e expressa em dois lugares especiais – contemplação (consciência não-dual ou unitiva) e ações específicas de comunhão com o sofrimento humano.

Este é o nosso nome formal e nossa tarefa, e ambos vêm da observação de Jesus.

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(*) Adaptado de Joan Chittister e Richard Rohr, Prophets Then, Prophets Now (Albuquerque, NM: Center for Action and Contemplation, 2006). Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/the-example-of-the-prophets-2022-10-16/>.

[1] Martin Buber, A Fé Profética, trad. Carlyle Witton-Davies (Nova York: Macmillan, 1949), capítulo 8.

16 de outubro de 2022

Semana quarenta e um

Os Oito Princípios Fundamentais do CAC

 

Jesus é nosso ponto de referência central*

(9 de outubro de 2022)

Esta semana compartilharemos os Oito Princípios Fundamentais que são a base do trabalho do CAC. O Primeiro Princípio Fundamental: O ensino de Jesus é nosso ponto de referência central. Padre Richard Rohr escreve:

Sem a certeza do ensino e do exemplo de Jesus, eu não teria coragem ou confiança para dizer o que disse ao longo de meus anos de ensino. Como posso confiar que valores como a não-violência, a simplicidade de vida, o perdão e a cura, a preferência pelos pobres e a própria graça radical são tão importantes quanto são, a menos que Jesus também o tenha dito?

Jesus está consistentemente ao lado dos excluídos, do forasteiro, do pecador e dos pobres. Esse é o seu lugar de liberdade, sua maneira única de criticar culturas egoístas e sua maneira de estar em união com o sofrimento do mundo - tudo ao mesmo tempo. Essa é a sua forma de cura universal. Também o coloca fora de qualquer pensamento estabelecido.

É bastante óbvio que Jesus passa a maior parte de seu ministério ao lado dos marginalizados e das pessoas na base das hierarquias da sociedade. Seu principal programa social e principal forma de trabalho de justiça é a solidariedade com o próprio sofrimento, onde quer que ele esteja. Jesus permanece com os demonizados até que a demonização pare. Este é o significado central de sua crucificação e por que a cruz é nosso único agente de salvação e libertação (ver 1 Coríntios 1:17–18).

A agenda de Jesus nos levou no CAC à nossa ênfase central na contemplação e conversão espiritual. Nosso trabalho é o trabalho de transformação humana e divina. A experiência de parentesco universal e solidariedade com Deus, nós mesmos e o resto do mundo é uma pista para uma significativa pacificação, trabalho de justiça, reforma social e direitos civis e humanos. Tal trabalho flui de um lugar positivo, até mesmo um lugar unitivo, onde “Eu e o Pai somos um” (João 10:30). Queremos que as pessoas dêem muito fruto no mundo “e fruto duradouro” (João 15:5, 16).

A verdadeira ação espiritual (em oposição à reação) exige nossa própria transformação contínua e radical. Muitas vezes, exige que mudemos de lado para que possamos estar onde está a dor. Exige até mesmo uma nova identidade, como Jesus exemplificou em seu grande auto-esvaziamento (ver Filipenses 2:6–8). Em vez de acusar os outros de pecado, Jesus “se tornou pecado” (2 Coríntios 5:21). Ele se solidarizou com o problema em si, quase nunca com “respostas” específicas para os problemas das pessoas. Sua solidariedade e compaixão foram elas mesmas a cura. Essa era a estratégia dele e, portanto, é a nossa. Parece fraqueza, mas finalmente muda as coisas de maneira muito criativa, paciente e humilde. Tal solidariedade é aprendida e expressa em dois lugares especiais – contemplação (consciência não-dual ou unitiva) e ações específicas de comunhão com o sofrimento humano.

Este é o nosso nome formal e nossa tarefa, e ambos vêm da observação de Jesus.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Standing with Jesus”, Radical Grace 25, no. 4, Os Oito Princípios Fundamentais (Outono de 2012): 9–12. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/jesus-is-our-central-reference-point-2022-10-9/>.

9 de outubro de 2022

Semana quarenta

Misticismo Franciscano

 

Uma conexão universal*

(3 de outubro de 2022)

O padre Richard Rohr escreve sobre o alcance cósmico do misticismo franciscano:

Eu uso a palavra misticismo em um sentido muito tradicional e clássico. Não está apontando para algo esotérico e indisponível, embora aponte para algo que só está disponível para aqueles que vão além da superfície e do exterior, aqueles que experimentam a graça interior e a conectividade de todas as coisas. Como Jesus, Paulo e o teólogo franciscano Boaventura (1221-1274) disseram cada um à sua maneira, o misticismo é muitas vezes tolice para os cultos e óbvio para os simples.

Enfatizo a conectividade porque esse dom inexplicável é o que sempre vejo nos verdadeiros místicos. Os místicos conhecem e desfrutam do núcleo conectado da realidade que está oculto para aqueles que não o desejam ou o buscam. Tudo o que os místicos sabem é que estão dentro de um imenso e maravilhoso segredo, que parece estar escondido ou negado (mas não negado!) pela maioria de nós. Os místicos olham com olhos diferentes que veem a graça em todas as coisas e a profunda conexão entre todas as coisas.

Enquanto o misticismo franciscano se sobrepõe a aspectos do misticismo não cristão – como o misticismo da natureza (panenteísmo), o misticismo judaico (Deus como “Um” e, portanto, tudo incluído), o misticismo islâmico sufi (êxtase e alegria), o misticismo hindu (consciência unitiva e ascetismo) e o misticismo do Budismo (não-violência e simplicidade) — o misticismo franciscano tem um lugar único no mundo através de suas lentes cristocêntricas. A mística franciscana trata de uma intuição de Jesus como o Cristo Encarnado e Universal. Francisco descobriu e amou tão poderosamente esse mistério em Jesus que acabou se tornando uma imagem viva de Cristo.

Foi a pessoa única de Jesus que Francisco e Clara se apaixonaram, precisamente em seu estado encarnado e humilde, identificando-se com os excluídos e os pequeninos, a quem Jesus chama de “o menor destes” (Mt 25,40). O viés para a borda e o fundo sempre esteve no coração da mística franciscana, explicando sua perene identificação com a pobreza e o sofrimento.

A visão cósmica, personalizada em Jesus, foi uma intuição que Francisco e muitos de seus seguidores viveram e experimentaram, mas a maioria deles não a formulou em palavras teológicas ou conceitos acadêmicos tanto quanto em estilos de vida. Normalmente, eles a pegavam por osmose, através do evangelho e da linhagem franciscana. Os seguidores de Francisco e Clara deram “frutos que permaneceram” e invariavelmente acreditavam na bênção original muito mais do que no pecado original.

O misticismo franciscano, portanto, não é realmente sobre Francisco, mas sobre uma noção universal do Cristo e, portanto, de toda a realidade. Francisco leva toda a nossa visão ao limite absoluto, sempre incluindo aqueles que outros sistemas podem facilmente excluir – leprosos, não-cristãos, pessoas pobres, forasteiros odiados. Quando se perde essa posição “nervosa”, pode ser minimisticismo, ou mesmo misticismo eclesiástico, mas nunca é misticismo franciscano. Francisco sabia que só o amor é grande o suficiente para lidar e manter a verdade. A verdade que não é amorosa, alegre e inclusiva nunca é a Grande Verdade.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Franciscan Mysticism: A Cosmic Vision”, Radical Grace 25, no. 1, Mística Franciscana (Inverno 2012): 12, 13, 20. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/a-universal-connection-2022-10-03/.

 

Obs.: O Transitus de São Francisco de Assis comemora a morte de Francisco e sua “passagem” para a vida eterna

2 de outubro de 2022

Semana trinta e nove

Uma Espiritualidade da Imperfeição

 

Descobrindo o Pequeno Caminho*

(25 de setembro de 2022)

Durante o ano de noviciado de Richard Rohr como franciscano, ele descobriu os escritos de Santa Teresa de Lisieux (1873-1897). O padre Richard descreve o ensinamento de Teresa como “uma espiritualidade da imperfeição”:

Muitas vezes mencionei meu amor por Teresa de Lisieux, uma freira carmelita francesa com educação formal mínima, que em sua curta e oculta vida de apenas 24 anos capturou a essência dos ensinamentos centrais de Jesus sobre o amor. Teresa foi declarada Doutora da Igreja em 1997 [1], o que significa que seu ensino é visto como totalmente confiável e fidedigna. Ela “democratizou” a santidade”, como disse o irmão Joseph Schmidt (1934-2022), “deixando claro que a santidade está ao alcance de qualquer pessoa disposta a fazer a vontade de Deus em amor a cada momento sucessivo à medida que a vida se desenrola”. [2]

Teresa entrou em uma Igreja Católica do século XIX, acreditando em um Deus raivoso e punitivo, perfeccionismo e validação pelo bom comportamento pessoal – que é um caminho muito instável e ilusório. Em meio a esse ambiente rígido, Teresa estava convencida de que sua mensagem, ensinada a ela pelo próprio Jesus, era “totalmente nova”. [3] O evangelho da graça radical havia sido esquecido por muitos cristãos, tanto que Teresa teve que chamá-lo de “novo”.

Teresa chamou esse caminho simples e infantil de seu “pequeno caminho”. É uma espiritualidade da imperfeição. Em uma carta ao padre Adolphe Roulland (1870-1934), ela escreve: “A perfeição me parece simples, vejo que é suficiente reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus”. [4] Qualquer “perfeição” cristã é, de fato, nossa capacidade de incluir, perdoar e aceitar nossa imperfeição. Como já disse muitas vezes, crescemos espiritualmente muito mais pelo erro do que pelo acerto. Essa pode ser apenas a lição central de como o crescimento espiritual acontece, mas nada em nós quer acreditar nisso.

Se existe perfeição humana, ela parece emergir precisamente de como lidamos com a imperfeição que está em toda parte, especialmente em nós mesmos. Que lugar inteligente para Deus esconder a santidade, para que apenas os humildes, “pequenos” e sinceros a encontrem! Uma pessoa “perfeita” acaba sendo aquela que pode conscientemente perdoar e incluir a imperfeição, em vez daquelas que pensam que estão totalmente acima e além da imperfeição. Isso de torna bastante óbvio quando assim dizemos em voz alta.

Se vamos falar de uma espiritualidade do amadurecimento, precisamos reconhecer que ela é sempre caracterizada por uma tolerância crescente à ambiguidade, um senso crescente de sutileza, uma capacidade cada vez maior de inclusão e aceitação e uma capacidade de viver com contradições e até amá-las! Não consigo imaginar outra maneira de chegar a esses horizontes amplos, exceto por meio de muitas provações, paradoxos insolúveis e erros ao tentar resolvê-los.

Perto do fim de sua vida, Thérèse explicou seu jeitinho para sua irmã, e isso se tornou parte de sua autobiografia História de uma Alma. Em contraste com o “grande caminho” do perfeccionismo heroico, ela ensina, em essência, como uma pequena “com todas as [suas] imperfeições” atrai o amor de Deus. Assim, Deus a ama e a ajuda porque ela é “muito pequena para subir a escada áspera da perfeição”. [5] Com total confiança, ela “acreditava ser infinitamente amada pelo Amor Infinito”.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Falling Upward: A Spirituality for the Two Half of Life (San Francisco: Jossey-Bass, 2011), xxii e O Pequeno Caminho: Uma Espiritualidade da Imperfeição (Albuquerque, NM: Centro de Ação e Contemplação, 2007). Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/discovering-the-little-way-2022-09-25/>.

[1] Papa João Paulo II, “Proclamação de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face como ‘Doutor da Igreja’”, homilia, 19 de outubro de 1997.

[2] Joseph F. Schmidt, Walking the Little Way of Thérèse of Lisieux: Discovering the Path of Love (Frederick, MD: The Word Among Us Press, 2012), 22.

[3] História de uma alma: A Autobiografia de Santa Teresa de Lisieux, trad. John Clarke, 2ª ed. (Washington, DC: ICS Publications, 1976), 207.

[4] Teresa a Adolphe Roulland, 9 de maio de 1987, em Teresa de Lisieux: Correspondência Geral, vol. 2, 1890-1897, trad. John Clarke (Washington, DC: ICS Publications, 1988), 1094.

[5] História de uma alma, 207.

[6] Louis Liagre, Retiro com Santa Teresa, trad. P. J. Owen (Londres: Douglas Organ, 1947), 22. Nota: Este é o livro que o Padre Richard leu durante seu ano de noviciado.

25 de setembro de 2022

Semana trinta e oito

Amadurecimento

 

Uma mente e um coração amadurecidos*

(18 de setembro de 2022)

Nas meditações desta semana, o padre Richard Rohr e outros professores abordam sobre o envelhecer bem com consciência, profundidade espiritual e propósito. Neste ensaio da revista Oneing do CAC, Richard usa a imagem do amadurecimento para descrever esse processo:

A palavra “maturação” nos ajuda a ir além de qualquer preocupação exclusiva com o envelhecimento físico, porque nossas preocupações vão além disso. Se devo acreditar nos romances, mitos, poemas e pessoas que conheci em minha vida, a velhice quase nunca é descrita como um ápice de conquista quando se senta no topo de um cume com os braços erguidos de um atleta vitorioso. É outra coisa, quase sempre outra coisa - geralmente algo diferente do que foi inicialmente imaginado, ou mesmo esperado.

O amadurecimento, na melhor das hipóteses, é um aprendizado lento e paciente e, às vezes, até um feliz desapego – um aparente esvaziamento para criar prontidão para um novo tipo de plenitude – sobre o qual nunca temos certeza. Se não permitirmos nosso próprio amadurecimento, uma resistência e uma negação cada vez maiores se instalam, uma proteção cada vez maior em torno de um eu "superdefendido". No nosso melhor, aprendemos a ter esperança à medida que amadurecemos. As esperanças da juventude têm objetivos concretos, enquanto a esperança dos anos mais velhos geralmente é esperança sem rumo, esperança sem objetivo, até mesmo esperança nua – talvez esperança real.

Esse alongamento é a agonia e a alegria dos anos posteriores, embora também se possa evitar essas duas experiências ricas. A velhice, como tal, é quase uma mudança completa de marchas e motores desde a primeira metade de nossas vidas, e acontece com calmas e lentas realizações, muitas vezes com negações e resistências interiores, e eventuais rendições. Todos elas, pela graça de Deus, trabalham com nosso senso cada vez mais profundo do que realmente desejamos e de quem realmente somos.

Realidade, destino, providência e tragédia são professores lentos, mas insistentes. O horizonte da velhice parece ser um plano que Deus preparou como inevitável e parte da necessária escola da vida. O que é dado gratuitamente também é retirado gratuitamente, assim como a lenta aceitação de Jó. E as vezes nos lembramos que sua eventual resposta dolorosa foi “Bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1:21).

Se vamos falar de uma espiritualidade do amadurecimento, precisamos reconhecer que ela é sempre caracterizada por uma tolerância crescente à ambiguidade, um senso crescente de sutileza, uma capacidade cada vez maior de inclusão e aceitação e uma capacidade de viver com contradições e até amá-las! Não consigo imaginar outra maneira de chegar a esses horizontes amplos, exceto por meio de muitas provações, paradoxos insolúveis e erros ao tentar resolvê-los.

O amadurecimento da mente e do coração é basicamente uma capacidade de consciência e contemplação não-dual. Portanto, minha orientação é um simples lembrete sobre o que seremos forçados a aprender de qualquer forma, tanto por necessidade como sob pressão - a maneira aberta de permitir e o significado profundo que alguns chamam de fé. Viver em fé confiante é amadurecer; é quase tão simples.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, introdução a Oneing 1, no. 2, Amadurecimento (outono de 2013): 11, 12–14. Disponível em <https://cac.org/ daily-meditations/a-ripening-mind-and-heart-2022-09-18/>.

18 de setembro de 2022

Semana trinta e sete

Perdão

 

Todos nós precisamos de perdão*

(11 de setembro de 2022)

Nesta homilia, o padre Richard Rohr nos lembra o poder radical e transformador do perdão:

Quando tudo é dito e feito, o evangelho se resume ao perdão. Eu diria que é todo o evangelho. É o começo, o meio e o fim. As pessoas que sabem perdoar sabem como é bom ser perdoado, não quando o mereciam, mas precisamente quando não o mereciam.

Se somos cristãos, provavelmente já dissemos o “Pai Nosso” dez mil vezes. As palavras simplesmente escapam de nossas línguas: “Perdoa-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. Ao fazer esta oração, pedimos e oramos por perdão. Observe a correlação completa entre como damos e como recebemos: “Perdoa-nos como nós perdoamos”. São o mesmo movimento. Precisamos saber que precisamos de misericórdia, precisamos de compreensão e, então, também precisamos saber como dá-las. Cada um flui com a energia do outro.

Frequentemente, venho encontrando pessoas em programas de 12 passos ou na prisão que perdoaram bastante as falhas de outras pessoas porque chegaram ao fundo do poço. Eles sabiam o quanto doe. Eles sabiam como é terrível se odiar e se acusar. Quando alguém com um coração generoso e um espírito amoroso entra em suas vidas e os perdoa, é como um renascer. Alguém ama uma parte de mim que nem eu consigo! Eles simplesmente me ensinaram muito sobre isso!

Lembro-me de quando era capelão da cadeia em Albuquerque, lia no jornal as histórias de criminosos da nossa cidade e formava uma opinião sobre o quão terríveis eram. Anos atrás, uma jovem cometeu assassinato para roubar um bebê. Todos na cidade a odiavam, eu acho. Fui à prisão no dia seguinte e me disseram que ela queria ver um padre.

Eu não queria entrar na cela porque sabia que não ia gostar dela. Eu sabia que iria julgá-la porque eu já a havia julgado. Não posso contar toda a história, mas vou compartilhar uma coisa: quando saí daquela cela, não tinha nada além de lágrimas e simpatia pelo sofrimento daquela jovem.

Veja, aquele que sabe tudo pode perdoar tudo. Mas tudo o que sabemos é um pedacinho — a parte que nos ofende. Só Deus sabe tudo, e assim Deus é Aquele que pode perdoar tudo.

Se formos honestos, nenhum de nós vive o evangelho. Nenhum de nós ama como poderíamos amar, ou como somos amados por Deus. Falo sobre isso do púlpito muito melhor do que vivo. E, no entanto, esse mesmo reconhecimento - que ainda não vivi o amor - me permite ficar sob a cachoeira da infinita misericórdia. É só então que eu sei como deixar a misericórdia fluir livremente através de mim. O fato de eu recebê-lo imerecidamente me permite dá-lo imerecidamente.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Certifique-se de que você precisa de perdão”, homilia, 16 de setembro de 2017. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/we-all-need-forgiveness-2022-09-11/>.

11 de setembro de 2022

Semana trinta e seis

A busca pelo Graal

 

Uma jornada heroica*

(4 de setembro de 2022)

O personagem principal é um herói ou heroína que encontrou ou fez algo além do alcance normal de realização e experiência. Um herói é alguém que deu sua vida a algo maior do que si mesmo. —Joseph Campbell, O Poder do Mito

Nas meditações desta semana nos voltamos para Quest for the Grail (Busca pelo Graal), baseado no trabalho anterior do Padre Richard com homens e espiritualidade. O poder do mito e da lenda pode nos ajudar a crescer em consciência e maturidade, e as lendas do Graal contêm muitos desses padrões arquetípicos. Todos estão convidados a embarcar em uma jornada heroica:

Tem-se dito que as lendas europeias sobre a busca do Graal surgiram de várias formas por volta de 1180 a 1350 EC. Elas se originaram em diferentes níveis da sociedade, justamente quando a grande história do evangelho estava em eclipse e não mais alcançava os ouvidos ou afetava a alma dos cristãos. Pode-se dizer que as histórias do Graal eram as formas dos leigos de traçar e descrever um caminho espiritual necessário e bom.

O mito expressava a profunda sabedoria do inconsciente coletivo cristão em um estilo que não era nem eclesiástico nem clerical. Em vez disso, essas histórias moviam-se com confiança para um mundo de mistério e metáfora. Eles podiam fazer isso porque a busca era real e os mitos estavam ancorados na realidade.

Acredito que vivemos em uma época em que a busca não é mais real. As pessoas não têm certeza do objetivo, são inseguras em sua busca por padrões significativos e até mesmo não estão convencidas de quaisquer origens divinas. É uma grande crise de significado para o Ocidente; no nível mais profundo, é uma perda de esperança. A ansiedade e as soluções para esta crise não podem ser abordadas em um nível meramente superficial ou de resolução de problemas. Apenas a psicologia ou mitologia sagrada são profundas e verdadeiras o suficiente para abordar questões de significado e esperança.

O que a verdadeira religião sempre fez foi abrir a porta para este universo simbólico, para o mundo da alma que é o principal ponto de acesso ao mundo espiritual. Já a religião saudável nos ensina como ver, como ver mais claramente e como ver as coisas por completo.

A busca pelo Graal é uma história caseira de um homem chamado Parsifal crescendo e aprendendo as perguntas certas por meio de provações e tentações enquanto ele avança em direção a Deus. Durante a busca, Deus fala e lidera através da família, fracasso, violência, visitantes, traição, sexualidade, natureza, sombra e visão. Cada pessoa e cada evento que o homem encontra é uma ocasião necessária e cheia de graça. Não há becos sem saída, embora pareça haver muitos. Não há perda de tempo, personagens inúteis, acontecimentos aleatórios. Tudo tem significado. É um universo totalmente encantado; Deus está em todas as coisas esperando para falar e até para abençoar.

A história do Graal pode ser contada e recontada, mas finalmente é uma busca que deve ser percorrida. É sempre uma descida, sempre um terror, e para quem conhece a história maior, sempre a participação em um milagre

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Quest for the Grail (New York: Crossroad Publishing, 1994), 9-13, 27. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/a-heroic-journey-2022-09-04/.

4 de setembro de 2022

Semana trinta e cinco

As Parábolas de Jesus

 

O joio e o trigo*

(28 de agosto de 2022)

As Meditações Diárias desta semana se concentram nas parábolas de Jesus como ensinamentos destinados à nossa transformação espiritual. Nesta homilia, o padre Richard Rohr descreve como a parábola de Jesus sobre o joio e o trigo oferece uma visão sobre como se tornar pessoas compassivas, mesmo sendo "joio e trigo" em vez de pessoas “joio ou trigo”. Clique aqui para ler a passagem do Evangelho (Mateus 13:24–30).

Este Evangelho não é apenas extremamente perspicaz, é também muito realista e compassivo. Com injustiças e crises em todas as partes do mundo, muitos de nós estão fazendo perguntas sobre o bem e o mal. “De onde vêm o joio? De onde se origina o mal? Por que as pessoas fazem coisas tão prejudiciais?” Eu pergunto isso cerca de uma dúzia de vezes todos os dias. Este mundo não faz sentido. Como as pessoas podem ser tão maliciosas, tão cruéis, tão indiferentes? É como se não soubéssemos mais cuidar, como se não soubéssemos acessar nossos próprios corações, nossas próprias almas e nossos próprios espíritos.

Este Evangelho não é apenas extremamente perspicaz, é também muito realista e compassivo. Com injustiças e crises em todas as partes do mundo, muitos de nós estão fazendo perguntas sobre o bem e o mal. “De onde vêm o joio? De onde se origina o mal? Por que as pessoas fazem coisas tão prejudiciais?” Eu pergunto isso cerca de uma dúzia de vezes todos os dias. Este mundo não faz sentido. Como as pessoas podem ser tão maliciosas, tão cruéis, tão indiferentes? É como se não soubéssemos mais cuidar, como se não soubéssemos acessar nossos próprios corações, nossas próprias almas e nossos próprios espíritos.

No entanto, Jesus nos mostra um realismo absoluto. Ele diz algo que nunca me foi dito quando eu era jovem: “Deixe o joio e o trigo crescerem juntos”. Uau! Isso é arriscado. Não posso fingir que entendo logicamente, embora saiba que isso me permite ser compassivo comigo mesmo. Afinal, eu também sou um campo de joio e trigo, assim como você é, e como tudo é. Tudo é um saco misto, uma combinação de bom e ruim. Não somos todos joios, mas também não somos todos trigo. Temos que aprender, mesmo agora, a aceitar e perdoar essa mistura de realidade em nós mesmos e em todos os outros. Se não o fizermos, normalmente nos tornaremos pessoas muito raivosas. Nosso mundo está cheio de pessoas raivosas porque elas não conseguem aceitar suas próprias ervas daninhas.

Aceitar esse ensinamento não significa que podemos dizer: “Não há problema em ser egoísta, violento e mau”. Significa simplesmente que temos algum realismo sobre nós mesmos e sobre os outros. Temos que nomear a erva daninha como uma erva daninha. Não podemos simplesmente fingir que é tudo trigo, tudo bom, porque não é. Não somos perfeitos. Nossos países não são perfeitos. A Igreja não é perfeita. O projeto de aprender a amar — que é nosso único projeto de vida — é simplesmente aprender a aceitar isso. Se você realmente ama alguém, e espero que todos amem, então você aprendeu a aceitar uma pessoa apesar de suas falhas e, às vezes, até por causa delas.

O amor nos leva a dizer: “Conheço seus defeitos, vejo suas ervas daninhas e cuido de você de qualquer maneira”. Somente o coração de Deus, somente a mente de Cristo em nós, realmente e plenamente sabe como fazer isso.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “The Weeds and the Wheat”, homilia, 20 de julho de 2014. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/the-weeds-and-the-wheat-2022-08-28/>.

28 de agosto de 2022

Semana trinta e quatro

Discernindo o que devemos fazer

 

Estamos sendo guiados*

(21 de agosto de 2022)

O que acontecerá se eu realmente confiar no amor de Deus por mim e permitir que Ele dirija minha vida? —Ilia Delio, Oração Franciscana

As meditações desta semana se concentram em como discernimos quais ações devemos fazer. Como disse Francisco de Assis em seu leito de morte: “Fiz o que é meu; que Cristo lhe ensine o que é seu!” [1] Padre Richard ensina que o discernimento começa com uma confiança autêntica na presença e orientação de Deus:

A vida plena de fé torna-se uma vida de profunda alegria e descanso. Uma vez que somos “enxertados na videira”, para usar as palavras de Jesus (ver João 15:4–5), não precisamos ficar ansiosos com muitas coisas (ver Lucas 10:41). Não precisamos nos preocupar com o próximo momento ou com o amanhã (ver Mateus 6:34). Podemos confiar que estamos sendo guiados; na verdade, quase tudo é visto como orientação. Nossa capacidade de confiar que há orientação disponível permite que ela se torne realidade! Basicamente, mudamos do modo de fixação, compreensão total e controle para o modo de confiança, escuta e permissão. Então começamos a permitir o Fluxo Divino em vez de pará-lo com um “não” ou um ponto de interrogação.

O Espírito em nós sabe como usar tudo o que acontece para trazer cura e crescimento. Podemos confiar que “Deus está mesmo nisso!” Isso não significa que não devemos trabalhar para mudar e melhorar as coisas; na verdade, muito pelo contrário. Mas quando nossa primeira resposta de coração e alma é um “sim” e não um “não”, então podemos experimentar Deus no momento e ver orientação nos eventos de nossas vidas. Podemos confiar que nada é desperdiçado. Se houver mudanças e correções que precisam ser feitas, agora podemos cuidar delas de maneira apropriada, calma e positiva. Isso é o que caracteriza um crente maduro em qualquer religião.

A fé, como vemos nas Escrituras Hebraicas e no uso que Jesus faz delas, está muito mais próxima das nossas palavras “confiança” ou “segurança” do que acreditar que as doutrinas são verdadeiras. Simplesmente acreditar em doutrinas não exige quase nenhuma rendição do ego ou mudança real do pequeno eu. Manter a confiança de que Deus é bom, que Deus pode ser confiável e que Deus está ativamente envolvido em minha vida é uma prática muito mais poderosa e eficaz. Este é o poder prático da fé bíblica. Pessoas cheias de fé são, simplesmente, utilizáveis para propósitos maiores porque vivem e ouvem um Eu muito Maior.

Richard compartilha que a prática contemplativa nos ajuda a crescer nessa fé confiante:

Pela minha própria experiência, sei que preciso de uma prática contemplativa. Alguma forma de oração do silêncio é necessária para me tocar no nível inconsciente, o nível onde ocorre a transformação profunda e duradoura. Do meu lugar de oração, posso compreender mais claramente o que devo fazer e ter coragem para fazê-lo.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, The Naked Now: Learning to See as Mystics See (New York: Crossroad Publishing, 2009), 122–123, 127. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/love-and-suffering-2022-08-14/>.

[1] Adaptado de Richard Rohr, A Spring within Us: A Book of Daily Meditations (Albuquerque, NM: CAC Publishing, 2016), 334–335; e Essential Teachings on Love, selecionado por Joelle Chase e Judy Traeger (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2018), 88.

21 de agosto de 2022

Semana trinta e três

Sofrimento

 

Amor e Sofrimento*

(14 de agosto de 2022)

O padre Richard Rohr ensina que Deus usa o amor e o sofrimento, e especialmente o sofrimento, como caminhos universais para nos alcançar e mudar.

Dois caminhos universais de transformação estão disponíveis para cada ser humano que Deus criou: grande amor e grande sofrimento. Estes são oferecidos a todos; eles nivelam os campos de jogo de todas as religiões do mundo. Somente o amor e o sofrimento são fortes o suficiente para quebrar nossas defesas habituais do ego, esmagar nosso pensamento dualista e nos abrir ao Mistério. Para mim, nenhuma outra experiência exerce a química misteriosa capaz de nos transformar de uma vida baseada no medo em uma vida baseada no amor. Nenhum de nós tem certeza do porquê. Sabemos que palavras, mesmo boas palavras ou boa teologia, não podem alcançar isso por conta própria. Não é surpresa que o ícone cristão da redenção seja um homem oferecendo amor de uma posição crucificada!

O amor e o sofrimento fazem parte da maioria das vidas humanas. Sem dúvida, eles são os principais mestres espirituais, mais do que qualquer Bíblia, igreja, ministro, sacramento ou teólogo. Não faria sentido para Deus tornar a verdade divina tão prontamente disponível? Se o amor de Deus é perfeito e vitorioso, Deus não ofereceria a cada ser humano acesso igual e universal ao Divino como o amor e o sofrimento fazem? Isto é o que Paulo parece estar dizendo aos atenienses em seu brilhante sermão no Areópago: “Todos podem buscar a Divindade, tateando seu caminho em direção a Deus e conseguindo encontrar Deus. Pois Deus não está longe de nenhum de nós, pois é em Deus que vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:27-28). Que peça de teologia brilhante e necessária até hoje!

O amor é o que ansiamos e para o qual fomos criados - na verdade, o amor é o que somos como uma efusão de Deus - mas o sofrimento muitas vezes parece ser nossa abertura para essa necessidade, esse desejo e essa identidade. Amor e sofrimento são os principais portais que abrem o espaço da mente e o espaço do coração (qualquer um pode vir primeiro), quebrando-nos em amplitude, profundidade e comunhão. Quase sem exceção, grandes mestres espirituais terão uma orientação forte e direta sobre amor e sofrimento. Se nunca formos lá, não conheceremos esses fundamentos. Vamos tentar resolver tudo em nossas cabeças, mas nossas mentes sozinhas não podem nos levar até lá. Devemos amar “de todo o nosso coração, de toda a nossa alma, de toda a nossa mente e de toda a nossa força” (Marcos 12:30).

Finalmente, há uma linha reta entre o amor e o sofrimento. Se amarmos muito, é quase certo que logo sofreremos, porque de alguma forma entregamos o controle a outro ser. Essa é minha definição simples de sofrimento: sempre que não estamos no controle.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, The Naked Now: Learning to See as Mystics See (New York: Crossroad Publishing, 2009), 122–123, 127. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/love-and-suffering-2022-08-14/>.

14 de agosto de 2022

Semana trinta e dois

Conhecimento Incorporado

 

Conhecer com todo o nosso ser*

(7 de agosto de 2022)

O padre Richard Rohr afirma que o verdadeiro “saber” ocorre dentro de nossos corpos, não apenas em nossas mentes:

O conhecimento profundo e a presença não acontecem com nossas mentes pensantes. Para conhecer algo verdadeiramente, todo o nosso ser deve estar aberto, desperto e presente. Nós sabíamos intuitivamente como estar presentes quando bebês. O psicólogo D. W. Winnicott (1896-1971) disse certa vez: “Não existe bebê sem a mãe”, ou seja, ele não existe isoladamente. [1] Há apenas um bebê/cuidador. Nos primeiros meses, do ponto de vista do bebê, eles são a mesma coisa. Os bebês se veem inteiramente espelhados nos olhos de sua família; eles logo acreditam e se tornam essa visão. A oração contemplativa oferece um espelhamento semelhante à medida que recebemos e devolvemos o olhar divino.

Em seu livro Coming to Our Senses, o historiador Morris Berman afirma que nossa primeira experiência de estarmos vivos não ocorre por meio da experiência visual ou auditiva de nos conhecermos a nós mesmos pelas respostas de outras pessoas; é sentida principalmente no corpo. Ele chama isso de conhecimento cinestésico. Conhecemo-nos na segurança de quem nos segura, pele a pele. Esse encontro inicial não é tanto ouvido, visto ou pensado. É sentido. Esse é o saber original. [2].

Os psicólogos dizem que quando começamos a sair desse primeiro conhecimento cinestésico, nos apegamos a coisas como ursinhos de pelúcia e bonecas. Minha irmã mais nova, Alana, teve o clássico cobertor de segurança quando bebê. Ela o arrastou para todos os lugares até que ficou sujo e esfarrapado, mas não pudemos tirá-lo dela. As crianças fazem essas coisas para se assegurarem de que ainda estão conectadas e unidas. Todos nós começamos a duvidar dessa união primordial à medida que a divisão sujeito/objeto de um mundo dividido lentamente toma conta. Corpo/mente/mundo/eu todos começam a nos separar. As falhas básicas do mundo tornam-se reais para nós - e o resto da vida será gasto tentando juntar tudo novamente. A verdadeira espiritualidade está sempre nos trazendo de volta a esse conhecimento original e incorporado que é a experiência unitiva.

Quando o conhecimento primordial está ferido ou ausente, muitas vezes é criada uma imensa dúvida sobre a nossa própria bondade fundacional e a de Deus. Muitas pessoas vivem com essa dúvida, e a experiência religiosa só lhes chega com muita dificuldade. A maioria das pessoas não sabe como se render a Deus. Como podemos nos render a menos que acreditemos que há alguém confiável lá fora para se render?

Felizmente, o olhar inicial de nossos cuidadores nos disse que éramos fundamentalmente amados. Mas quando inevitavelmente começamos a nos ver por meio de olhos que comparam, julgam e rejeitam, então precisamos de espiritualidade para ajudar a curar a quebra de nossa identidade e nosso mundo. O dom da verdadeira religião é que ela abre o véu e nos diz que nossa experiência primordial foi confiável. Diz-nos que somos amados, quer tenhamos recebido esse olhar espelhado ou não. Isso nos assegura que vivemos em um universo benevolente e está do nosso lado. O universo, garante-nos, é graça radical.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Everything Belong: The Gift of Contemplative Prayer, rev. ed. (Nova York: Crossroad Publishing, 1999, 2003), 66-69. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/knowing-with-our-whole-being-2022-08-07/>.

[1] D. W. Winnicott, “Anxiety Associated with Insecurity”, em Through Pediatrics to Psycho-Analysis (New York: Basic Books, 1975), 99.

 

[2] Ver Morris Berman, Coming to Our Senses: Body and Spirit in the Hidden History of the West (Brattleboro, VT: Echo Point Books and Media, 1989, 2015), capítulo 1.

7 de agosto de 2022

Semana trinta e um

Inocência

 

Saindo do Jardim*

(31 de julho de 2022)

Richard Rohr começa as meditações desta semana refletindo sobre nossa “queda da inocência” como uma parte necessária do processo de transformação:

A palavra “inocente” tem de sua raiz latina o significado de “não ferido”. É assim que todos começamos a vida. Somos todos inocentes. Não tem nada a ver com moralmente certo ou errado. Tem a ver com ainda não estar ferido. Começamos ilesos. Começamos inocentes, mas a morte de nossa santa inocência (como na ordem de Herodes para matar os Santos Inocentes [Mateus 2:16-18]) é uma imagem arquetípica do que eventualmente acontece com todos nós. Provavelmente tem que acontecer para nós crescermos. Temos que sair do jardim. Esse movimento de ir e vir, sair e voltar, ir adiante e retroceder, é o processo de transformação. É a maneira como aumentamos o espaço da liberdade em nossas vidas, para que tenhamos a capacidade de um relacionamento verdadeiro.

Jesus conta três parábolas sobre perder e encontrar: a ovelha perdida, a moeda perdida e o filho perdido (Lucas 15:4–32). Em cada caso, pensamos que somos donos e perdemos, redescobrimos e depois festejamos. A festa só acontece depois da redescoberta, após a evidenciação da inexistência de posse, diante da aparente perda e da consciente escolha em seguida. Essa é a jornada humana, o movimento da primeira ingenuidade ou falsa inocência para a liberdade escolhida e consciente para a qual Deus está nos chamando.

O menino Jesus é a imagem do ileso. Nosso filho crístico interior é a parte de nós que não está ferida. À nossa maneira, cada um de nós tem que redescobrir, honrar, reconhecer e possuir aquele Cristo criança interior. Podemos ter perdido a visão da inocência, mas o menino Jesus é aquela parte de nós que sempre disse “sim” a Deus e sempre dirá.

Jesus disse: “Não vos deixarei órfãos” (João 14:18). Fé é confiar que existe uma união intrínseca entre nós e Deus. A contemplação é vivenciar essa união. O caminho da queda e do retorno é como vivenciamos essa união como pura graça e dom gratuito.

Há um movimento necessário entre as duas extremidades do eixo divino/humano, entre o próprio núcleo e o núcleo de Deus. O único pecado real é duvidar, negar ou deixar de experimentar essa conexão básica e fundamental. Se não temos alguns espelhos pequenos (parceiros, amigos, amantes) que nos dizem que somos bons, é muito difícil acreditar na Grande Bondade.

Precisamos de pelo menos um vislumbre experiencial desse Eu Verdadeiro antes de começarmos a falar sobre nos livrarmos do “falso” ou eu separado. Acho que o único propósito da religião é nos levar a uma experiência do Verdadeiro Eu. Cada sacramento, cada leitura da Bíblia, cada culto na igreja, cada música, cada pedaço de sacerdócio, cerimônia ou liturgia, no que me diz respeito, é para nos permitir experimentar nosso Verdadeiro Eu: quem somos em Deus e quem Deus é em nós.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, True Self, False Self (Cincinnati, OH: St. Anthony Messenger Press, 2003), CD. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/leaving-the-garden-2022-07-31/>.

31 de julho de 2022

Semana trinta

Santa Escuta

 

Permanecer no Relacionamento*

(24 de julho de 2022)

Jesus disse: ‘Permanecei em mim, como eu em vós. Como um ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, é vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto, porque sem mim nada podeis fazer (...) Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei em meu amor. (João 15,4–5, 9)

 

O tema das Meditações Diárias deste ano é “Nada mantem-se sozinho”, uma verdade revelada em Deus como Trindade e em toda a criação. Nesta semana, exploramos que ouvir com profundidade, respeito e até reverência é a chave para construir e manter relacionamentos amorosos. Nesta homilia, o padre Richard fala do desejo de Jesus de que permaneçamos conectados:

Eu quero que você seja honesto: você prefere ter um amigo que está sempre certo ou um que está em um relacionamento correto com você? Acho que sei a resposta: preferimos ter alguém que tenha um relacionamento correto conosco. Na verdade, alguém que está certo o tempo todo pode ser bastante desagradável. Preferimos ter um amigo que está sempre correto ou um amigo com quem estamos sempre conectados? Claro, preferimos o segundo.

Então, por que nós, no Ocidente, aparentemente mudamos as regras para Deus? Muitos de nós crescemos pensando que Deus queria que estivéssemos certos, corretos e até mesmo perfeitos. O que esta passagem do Evangelho de João está dizendo é que Deus quer pessoas que estejam no relacionamento correto, o que significa que estamos abertos e que podemos ouvir os outros com compreensão e compaixão. Isso significa que podemos admitir quando estamos errados, o que é quase todos os dias para a maioria de nós. Certamente é para mim.

E ainda assim continuamos condenando a nós mesmos e aos outros por não sermos perfeitos, por não estarmos direitos, por não estarmos certos. Esta parábola, realmente uma das mais belas de todos os evangelhos, nos diz o que Deus deseja – simplesmente que permaneçamos conectados, um ramo na videira, que é o amor de Deus.

Parece que todos mantem-se sempre tentando provar que estão certos. Temos quase uma incapacidade coletiva de admitir o fracasso, de admitir que estamos errados, o que nos torna mentirosos na maioria das vezes. Jesus está chamando um tipo muito diferente de ser humano.

Jesus diz que as pessoas que vivem a vida vulnerável de conexão e relacionamento darão muito fruto. Essas são as pessoas em quem confiamos, gostamos e admiramos. E, no entanto, muitos de nós têm medo de ser a coisa que mais admiramos. Como os seres humanos são tolos! Mas, novamente, Jesus nos disse o caminho: ele é a videira. Nós somos os ramos. Nenhum de nós pode ou precisa estar correto, mas podemos sempre estar conectados.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Being Connected over Being Correct”, homilia, 28 de abril de 2018. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/remain-in-relationship-2022-07-24/>.

24 de julho de 2022

Semana vinte e nove

Mulheres místicas do século XX

 

Amado Deus*

(17 de julho de 2022)

As Meditações Diárias desta semana apresentam escritos de mulheres místicas do século XX. Cada uma compartilha sua experiência de Deus como amor incondicional e insuperável de sua formação única. Padre Richard Rohr acredita que isso é verdade para todos os místicos:

As pessoas que conhecem bem a Deus — místicos, eremitas, aqueles que arriscam tudo para encontrar Deus — sempre encontram um amante, não um ditador. Deus nunca é encontrado como um pai abusivo ou uma mãe tirânica; Deus é sempre um amante maior do que ousamos esperar. Quão diferente do “gerente de contas” a maioria das pessoas parece adorar. Deus é o amante que tudo recebe e perdoa.

Quando entramos na Presença, encontramos alguém não contra nós, mas alguém que é definitivamente a nosso favor! Os místicos reconhecem que outra pessoa os está segurando. As pessoas que oram sempre dizem: “Alguém é para mim mais do que eu para mim mesmo”. A oração é ser amada em um nível profundo e doce. Espero que todos tenham sentido essa intimidade a sós com Deus. Eu prometo que está disponível para todos. Talvez muitos de nós só precisem ser informados de que é isso que devemos esperar e buscar. Temos medo de pedir; temos medo de procurar. Parece presunçoso. Não podemos confiar que tal amor existe. Mas sim, existe.

O padre Richard encontrou grande inspiração nos últimos anos nos escritos do místico judeu Etty Hillesum (1914-1943). Em suas cartas do campo de trânsito de Westerbork, Hillesum descreve o consolo que encontra na presença contínua de Deus:

Você me fez tão rico, oh Deus, por favor, deixe-me compartilhar Sua beleza com as mãos abertas. A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, oh Deus, um grande diálogo. Às vezes, quando estou em algum canto do acampamento, meus pés plantados em sua terra, meus olhos erguidos para o seu céu, lágrimas às vezes escorrem pelo meu rosto, lágrimas de profunda emoção e gratidão. À noite, também, quando deito em minha cama e descanso em Ti, oh Deus, lágrimas de gratidão escorrem pelo meu rosto, e essa é a minha oração. Estou terrivelmente cansado há vários dias, mas isso também vai passar. As coisas vêm e vão em um ritmo mais profundo, e as pessoas devem ser ensinadas a ouvir; é a coisa mais importante que temos que aprender nesta vida. Eu não estou desafiando você, oh Deus, minha vida é um grande diálogo com você. Posso nunca me tornar o grande artista que realmente gostaria de ser, mas já estou seguro em Ti, Deus. Às vezes eu tento me aprofundar um pouco em curtos contos incertos, mas sempre chego a apenas uma única palavra: Deus. E isso diz tudo, e não há necessidade de mais nada. E todos os meus poderes criativos são traduzidos em diálogos internos com Você. A batida do meu coração tornou-se mais profunda, mais ativa e ainda mais pacífica, e é como se eu estivesse o tempo todo acumulando riquezas interiores. [1]

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Everything Belong: The Gift of Contemplative Prayer, rev. ed. (Nova York: Crossroad Publishing, 2003), 131, 134, 135. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/god-is-the-beloved-2022-07-17/>.

[1] Etty Hillesum, Uma Vida Interrompida: Os Diários, 1941–1943; e Cartas de Westerbork, trad. Arnold J. Pomerans (Nova York: Metropolitan Books, 1996), 332.

17 de julho de 2022

Semana vinte e oito

Prática do melhor

 

Alegria de não contar*

(10 de julho de 2022)

Para o padre Richard, Francisco de Assis (1182-1226) é um exemplo brilhante de alguém que “praticou o melhor”. Em vez de confiar no julgamento e na crítica, Francisco entendeu o poder de simplesmente viver de uma maneira melhor:

Deus deu São Francisco à história no período crucial em que a civilização ocidental começou a se mover para a racionalidade, funcionalidade, consumismo e guerra perpétua. Francisco era ele próprio um soldado e filho de um comerciante de tecidos; ele veio da cultura que criticava e desafiou esses sistemas emergentes no início de seus agora oito séculos de domínio mundial. Em vez de lutar diretamente contra os sistemas e correr o risco de se tornar sua imagem espelhada, Francis apenas fez as coisas de maneira diferente. Ele é a inspiração para este princípio central do Centro de Ação e Contemplação: A melhor crítica do ruim é a prática do melhor. [1]

Como observou o teólogo Adolf Holl (1930-2020), Francisco nasceu quando as pessoas começaram a medir o tempo por relógios em vez de sinos de igreja. [2] Quando os líderes cristãos começaram a contar, Francisco parou de contar. Ele passou da economia comum do mérito para a maravilhosa economia da graça, onde Deus não faz nenhuma contagem, mas apenas dá sem reservas.

À medida que a Europa começou a centralizar e organizar tudo em altos níveis de controle, Francisco disse, como um trapaceiro divino: “Quem se importa?!” Quando o catolicismo romano sob o papa Inocêncio III (1160/61-1216) atingiu o ápice do poder papal e mundano, Francisco respondeu: “Há outro caminho que é muito melhor!” Quando começamos um estilo de produção e consumo que acabaria por devastar o planeta Terra, ele decidiu amar a Mãe Terra e viver com simplicidade e descalço sobre ela. E Francisco fez tudo isso com uma “alegria perfeita” que vem do abandono do ego.

Francisco não se incomodou em questionar doutrinas e dogmas da Igreja. Ele apenas levou a sério a imitação de Cristo e tentou viver da maneira que Jesus viveu. Em A lenda de Perugia, um dos primeiros relatos sobre Francisco, ele lembra aos primeiros frades que eles somente sabem o que fazem. [3] Sua ênfase na ação, prática e estilo de vida foi fundamental e revolucionária para a época e está na raiz da ortodoxia alternativa franciscana. Francisco e Clara apaixonaram-se pela humanidade e humildade de Jesus. Para eles, Jesus era alguém realmente para imitar e não apenas para adorar como divino.

Os primeiros frades franciscanos e as primeiras Clarissas queriam ser praticantes do evangelho em vez de meramente “propaladores da palavra”, “inspetores” ou “curadores de museus”, como o Papa Francisco chama alguns clérigos. Tanto Francisco quanto Clara ofereceram suas regras como a forma vitae, ou forma de vida. Eles viam a orthopraxis (prática correta) como um paralelo necessário, e talvez até precedente, à ortodoxia verbal (ensino correto). A história tem mostrado que muitos cristãos nunca chegam às implicações práticas de suas crenças. "Por que você não está fazendo o que você diz que acredita?" o profeta invariavelmente pergunta.

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(*) Adaptado de Richard Rohr,Eager to Love: The Alternative Way of Francis of Assis (Cincinnati, OH: Franciscan Media, 2014), 86–87, 200–201; e Retornando ao essencial: ensinando uma ortodoxia alternativa (Albuquerque, NM: Centro de Ação e Contemplação, 2015). Disponível em CD e download em MP3. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/the-joy-of-not-counting-2022-07-10/>.

[1] Ver “Os Oito Princípios Fundamentais do Centro de Ação e Contemplação”.

 

2] Adolf Holl, O Último Cristão, trad. Peter Heinegg (Garden City, NY: Doubleday, 1980), 1.

[3] A Compilação de Assis, [105], em Francisco de Assis: Documentos Antigos, vol. 2, The Founder (Nova York: New City Press, 2000), 210. Esta compilação dos primeiros textos franciscanos inclui The Legend of Perugia.

10 de julho de 2022

Semana vinte e sete

A humanidade é uma comunidade

 

Realidade como comunão*

(3 de julho de 2022)

O padre Richard vê a comunidade e a conexão como centrais para a vida cristã e intrínsecas à própria Realidade:

No princípio Deus diz: “Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança” (Gênesis 1:26). O uso do pronome plural aqui parece ser uma incrível e profunda intuição do que os cristãos mais tarde chamariam de Trindade, que é a revelação da natureza de Deus como comunidade, como relacionamento em si, um Mistério de dar e receber de forma perfeita. O Corpo de Cristo é outra metáfora para essa ligação. “Realidade como comunhão” é o modelo e o padrão para todo o nosso universo, dos átomos às galáxias, e certamente na comunidade humana.

Chegamos a conhecer quem é Deus por meio de trocas de conhecimento e amor mútuos. O método básico de Deus para comunicar o “eu” de Deus não é o indivíduo “salvo”, o crente corretamente informado, ou mesmo uma pessoa com uma carreira no ministério. Deus se comunica principalmente por meio da jornada e do processo de união que se inicia na comunidade: em casamentos, amizades, famílias, tribos, nações, escolas, organizações e igrejas que buscam participar do amor de Deus, talvez sem saber disso conscientemente.

Thomas Merton escreveu: “O cristão não está meramente 'sozinho com o Sozinho' no sentido neoplatônico, mas [é] Um com todos os 'irmãos e irmãs em Cristo'. É de uma maneira misteriosa e única inseparável de todos os outros 'eus' que vivem em Cristo, de modo que todos eles formam uma 'Pessoa Mística', que é 'Cristo'” [1]

A menos que Cristo seja experimentado como um relacionamento vivo entre as pessoas, o evangelho permanece em grande parte uma abstração. Até que Cristo seja transmitido pessoalmente por meio da fidelidade e do perdão para com o outro, por meio de vínculos concretos de união, duvido que seja transmitido por palavras, sermões, instituições ou ideias.

Viver em comunidade significa viver de tal forma que outros possam me acessar e influenciar minha vida. Significa que posso “sair de mim mesmo” e servir a vida dos outros. A comunidade é um mundo onde o parentesco é possível. Por comunidade não me refiro principalmente a um tipo especial de estrutura, mas a uma rede de relacionamentos. Infelizmente, no geral, vivemos em uma sociedade que é construída na competição, não na comunidade e cooperação.

Se a Trindade revela que Deus é o próprio relacionamento, então o objetivo da jornada espiritual é descobrir e avançar em direção à conexão em níveis sempre novos. A mente contemplativa desfruta da união em todos os níveis. Podemos começar fazendo pequenas conexões com a natureza e os animais, e depois crescer em conexões mais profundas com as pessoas. Finalmente, podemos experimentar a plena conexão como união com Deus e com todos.

Sem conexão e comunhão, não existimos plenamente com nossos “eus” mais verdadeiros. Tornar-se quem realmente somos é uma questão de aprender a nos tornarmos cada vez mais profundamente conectados. Ninguém pode ir para o céu sozinho - ou não seria o céu quando chegasse lá.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Essential Teachings on Love, selecionado por Joelle Chase e Judy Traeger (Maryknoll, NY: Orbis Books, 2018), 65, 102–103, 104–105; e Simplicidade: The Freedom of Letting Go (Nova York: Crossroad Publishing, 1991, 2003), 65. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/reality-as-communion-2022-07-03/>.

[1] Thomas Merton, The Inner Experience: Notes on Contemplation, ed. William H. Shannon (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2003), 22. Nota: pequenas edições feitas para linguagem inclusiva.

3 de julho de 2022

Semana vinte e seis

Judaísmo: Místicos Hassídicos

 

Uma renovação espiritual*

(26 de junho de 2022)

Para as Meditações Diárias desta semana, compartilhamos a sabedoria do Hassidismo, uma tradição mística judaica que surgiu há várias centenas de anos no que hoje é a Ucrânia. O estudioso judeu Arthur Green resume a origem desse movimento e sua dependência da oração contemplativa:

O Hassidismo [é] o grande movimento de renascimento religioso que trouxe novo espírito à vida dos judeus nas cidades e aldeias da Polônia e da Ucrânia na segunda metade do século XVIII. Aqui o culto, particularmente na forma de oração contemplativa, passou a ser claramente identificado por um novo grupo de mestres religiosos como o foco central da vida religiosa do judeu. Tanto as manifestações extáticas das pessoas comuns quanto os tratamentos altamente sofisticados da psicologia devocional nas obras dos primeiros mestres hassídicos testemunham essa nova e única ênfase na vida interior da oração. [1]

O rabino polonês e teólogo influente Abraham Joshua Heschel (1907-1972) encontrou grande inspiração neste período da espiritualidade e história judaica:

Então veio o rabino Israel Baal Shem (c. 1700-1760) no século XVIII, e trouxe o céu para a terra. Ele e seus discípulos, os Hassidim (...). descobriu o prazer inefável de ser judeu. Deus não é apenas o criador da terra e do céu. Ele também é Aquele “que criou deleite e alegria” (...). O judaísmo era como se tivesse renascido. Versículos bíblicos, observâncias, costumes, de repente adquiriram um sabor como o de um novo grão (...) Os judeus se apaixonaram pelo Senhor e sentiram “tal anseio por Deus que era insuportável”.

Eles começaram a sentir a doçura infinita que vem com o cumprimento do preceito de hospitalidade ou de usar o talith [xale de oração] e o tefilin. [1] Que sentido há para a vida de um judeu, se não for para adquirir a capacidade de sentir o sabor do céu? [Aquele] que não prova o paraíso no cumprimento de um preceito neste mundo não sentirá o sabor do paraíso no mundo vindouro. E assim os judeus começaram a sentir a vida eterna em uma melodia sagrada e a absorver o sábado como uma vívida antecipação da vida futura. [2]

Um dos grandes temas dos ensinamentos do Padre Richard é a importância de experimentar o amor e o deleite de Deus, e o vazio da religião sem ele:

O problema com grande parte da religião cívica e do cristianismo cultural é a falta de experiência religiosa. As pessoas que não tiveram uma experiência amorosa ou íntima com Deus tendem a ser extremamente rígidas, dogmáticas e controladoras em relação à religião. Eles pensam que se orarem as palavras certas, lerem a Bíblia diariamente e forem à igreja com bastante frequência, isso acontecerá. Mas Deus nos ama antes de fazermos os rituais. Deus não precisa deles, mas precisamos que eles expressem com ternura nossa devoção e desejo infantis - e entrem em contato com esse desejo. O grande mandamento não é “você deve estar certo”. O grande mandamento é “estar apaixonado”. [3]

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Everything Belongs: The Gift of Contemplative Prayer (Nova York: Crossroad Publishing, 1999, 2003), 88. Disponível em versão impressa ou download em PDF. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/a-spiritual-renewal-2022-06-26/>.

[1] Arthur Green e Barry W. Holtz, eds., trad., Your Word is Fire: The Hasidic Masters on Contemplative Prayer, 2ª rev. ed. (Nashville, TN: Jewish Lights, 2017), vii.

[2] Tefilin são pequenas caixas de couro preto contendo versículos da Torá, com tiras usadas para usar na cabeça ou no braço.

[3] Abraham Joshua Heschel, A Terra é do Senhor; e, The Sabbath (Cleveland, OH: World Publishing Co., 1963), 75, 76-77.

26 de junho de 2022

Semana vinte e cinco

Sobriedade Emocional

 

Maturidade Emocional*

(19 de junho de 2022)

Padre Richard apresenta as meditações desta semana sobre Sobriedade Emocional:

O fundador dos Alcoólicos Anônimos, Bill Wilson (1895-1971) via a sobriedade emocional como o destino dos Doze Passos. O objetivo não é simplesmente parar de beber, mas tornar-se uma pessoa espiritualmente desperta que encontrou algum grau de desapego de suas próprias respostas emocionais e narcisistas. Como é que todos nós somos tão facilmente fisgados, tão facilmente enganados por coisas muitas vezes temporárias ou até mesmo irracionais?

Deixe-me tentar descrever o processo. A palavra “emoção” (do latim emovere) significa um movimento. É uma reação baseada no corpo quando me prende de forma imediata e urgente e parecendo o “eu”. Algumas pessoas dizem que devemos chamar as emoções de “reações narcisistas”, e temos que reconhecer que elas são em grande parte! Uma vez que o corpo carrega toda a nossa vergonha, nosso condicionamento e memórias da infância, nossa culpa e nossas mágoas anteriores, os padrões viciantes de nossas emoções podem ser muito difíceis de se “desprender”. As emoções parecem verdade, mas necessariamente não são.

Isso não significa que as emoções devem ser ignoradas. Elas devem ser sentidas; sua mensagem honesta deve ser ouvida. Só então podemos nos libertar de seu fascínio sobre nós. São cataventos necessários para nos ajudar a lermos as situações rápida e profundamente. Mas também são respostas neurais aprendidas e praticadas, muitas vezes baseadas no ego, que têm pouco a ver com a verdade e muito mais a ver com as histórias que aprendemos e criamos. O ego adora se apegar a tais emoções para se justificar, defender-se e afirmar seu poder. Não há nada como uma pessoa irritada para controlar uma conversa inteira!

Muito do trabalho de maturidade emocional está relacionado a aprender a distinguir entre emoções que oferecem uma mensagem útil sobre nós mesmos ou sobre o momento, e emoções que são meramente reações narcisistas vinculadas ao momento. Atrevo-me a dizer que, até que tenhamos encontrado nosso centro e fundamento espiritual, a maioria de nossas respostas emocionais são geralmente autorreferências demais para serem úteis ou verdadeiras. Elas leem o momento como se o “eu”, com suas necessidades e dores imediatas, fosse o ponto de referência para a verdade objetiva. Não é. O pequeno “eu” defensivo não pode ocupar esse espaço. Realidade/Deus/Criação detém esse espaço. O uso persistente do pequeno “eu” como ponto de referência objetivo só criará problemas mais profundos a longo prazo; não vai resolvê-los.

Se uma emoção não nos ajuda a ler uma situação melhor e com mais verdade, devemos deixá-la ir — para nosso próprio bem-estar. A maioria de nós é naturalmente boa em apego, mas temos muito pouco treinamento em desapego ou para permitir que as coisas sigam em frente. Devemos correr o risco do apego legítimo (sentir plenamente a emoção), aprender sua importante mensagem e, então, ter a presença e o propósito de nos desapegar dessa emoção fascinante depois que ela fizer seu trabalho. Este é o dom e o poder de uma pessoa emocionalmente madura.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Emotional Sobriety: Rewiring Our Programs for 'Happiness' (Albuquerque, NM: Center for Action and Contemplation, 2011). Disponível em CD, DVD e download de MP3; e “Introdução”, Oneing 6, nº. 1, Raiva (primavera de 2018): 14–15. Disponível em versão impressa ou download em PDF. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/emotional-maturity-2022-06-19/>.

19 de junho de 2022

Semana vinte e quatro

Contemplação e Ação Franciscana

 

Um Ministério de Ação e Contemplação*

(12 de junho de 2022)

As Meditações Diárias desta semana se concentram na visão unificada franciscana de contemplação e ação. O padre Richard conta uma história antiga sobre o caminho vocacional de Francisco de Assis (1182-1226):

Um dos carismas fundacionais de São Francisco de Assis foi a forma como ele integrou contemplação e ação. Desde cedo, ele é atraído pela contemplação e por viver em silêncio na natureza. Mas ele não tem certeza se é isso que Deus quer que ele faça. Assim, Francisco envia dois irmãos à irmã Clare e ao irmão Silvestre para pedir a cada um que rezem por uma resposta: ele deveria viver recluso, em oração, ou viajar pela Itália e ministrar às pessoas como pregador?

Quando os irmãos voltam, Francisco está pronto para fazer o que eles disserem. Ambos dão a mesma resposta: Clara e Silvestre disseram que era a vontade de Deus “que o arauto de Cristo pregasse”. Francisco levanta-se e rapidamente vai para as estradas em obediência a Deus. [1]

A ânsia de Francisco de servir a Deus pregando não limitou seu profundo amor pelo encontro com Deus na oração. Quando precisava descansar da multidão que se reunia para ouvi-lo, era costume que Francisco “dividisse o tempo que lhe era dado . . . para gastar parte dele em benefício de seus vizinhos e usar o resto na abençoada solidão da contemplação”. [2]

O padre Richard descreve como Francisco desejava a mesma combinação de ministério contemplativo e ativo para seus frades:

A cosmovisão franciscana aponta para o Cristo em toda parte. Na verdade, esta foi a minha tese de Bacharel em Artes na faculdade. Eu escrevi sobre a citação de Francisco onde ele diz: “Não me fale de Bento; não me fales de Agostinho! O Senhor me chamou para um caminho diferente”. [3]

Francisco não precisou criar um mosteiro, como fizeram os beneditinos e agostinianos. Ele não queria que fôssemos monges fechados. Ele queria que fôssemos frades, vivendo no meio do povo. Até hoje, os conventos franciscanos estão no coração da maioria das grandes cidades europeias.

Há mais de trinta e cinco anos, quando nomeamos nossa organização de Centro de Ação e Contemplação, eu estava apenas sendo um bom franciscano. Foi São Boaventura (1221-1274) na Universidade de Paris quem teve que debater com os padres seculares (diocesanos) que diziam que o modo franciscano de colocar ação e contemplação juntos não funcionaria. Eles queriam que os franciscanos escolhessem um ou outro. Os padres seculares trabalhavam com o povo nas paróquias, enquanto os “verdadeiros” religiosos iam para os mosteiros. Francisco e seus seguidores pensaram que deveria haver uma maneira de fazer as duas coisas.

Isso foi único. É quase como se a consciência humana simplesmente não pudesse imaginar que alguém pudesse encontrar Deus, exceto indo para o deserto, para o mosteiro, longe de problemas, longe do casamento, longe das pessoas.

E oitocentos anos depois, ainda estamos tentando aprender a equilibrar contemplação e ação.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Franciscan Mysticism: I AM That What I Am Seeking (Albuquerque, NM: Center for Action and Contemplation, 2012). Disponível para download em CD e MP3; e Nos Passos de Francisco: Despertar para a Criação (Albuquerque, NM: Centro de Ação e Contemplação, 2010). Disponível em CD e download em MP3. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/a-ministry-of-action-and-contemplation-2022-06-12/>.

[1] Ver Boaventura, A Vida do Beato Francisco, cap. 12, in Francisco de Assis: Early Documents, vol. 2, The Founder (Nova York: New City Press, 2000), 623-624.

[2] Tomás de Celano, A Vida de São Francisco, cap. 2, in Francisco de Assis: Early Documents, vol. 1, The Saint (Nova York: New City Press, 1999), 261.

[3] Ver A Compilação de Assis, cap. 18, in Francisco de Assis: Early Documents, vol. 2, The Founder (Nova York: New City Press, 2000), 133.

12 de junho de 2022

Semana vinte e três

O Espírito Santo

 

Batismo no Fogo e no Espírito*

(5 de junho de 2022)

Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reu­nidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. (At 2,1-4)

Na homilia de Pentecostes, o padre Richard Rohr nos encoraja a reconhecer e invocar o Espírito Santo, um dom que Deus já nos deu!

É uma pena que o Espírito Santo tenda a ser uma reflexão tardia para muitos cristãos. Nós realmente não “temos o Espírito”. Tendemos, receio, a simplesmente seguir os movimentos. Acreditamos formalmente, mas honestamente, que não há muito fogo nisso; não há muita convicção, tampouco muito serviço. Nós, quando muito, apenas acreditamos. É por isso que nos Evangelhos há dois batismos que se distinguem claramente. Há o batismo com água que a maioria de nós está acostumada, e há o batismo “com o Espírito Santo e fogo” (Mateus 3:11), o que realmente importa.

O batismo na água, que muitos de nós recebemos quando crianças, realmente exige pouca convicção ou compreensão. Até que tal batismo se torne real, que conheçamos Jesus e nele confiemos, que o invoquemos, que dele compartilhemos, que o amemos, estaremos apenas caminhando.

Podemos reconhecer pessoas que tiveram um segundo batismo no Espírito Santo. Eles tendem a ser amorosos e emocionantes. Eles querem servir aos outros e não apenas serem servidos. Eles perdoam a própria vida por não ser tudo o que eles esperavam. Eles perdoam seus vizinhos. Eles se perdoam por não serem tão perfeitos quanto gostariam de ser.

Apesar de tantas vezes orarmos: “Vem, Espírito Santo”, o dom do Espírito já está dado. O Espírito Santo já veio. Todos vocês são templos do Espírito Santo, igualmente, objetivamente e para sempre! A única diferença é o grau em que o conhecemos, recorremos a ele e acreditamos conscientemente nele. Todas as imagens bíblicas do Espírito são dinâmicas — água corrente, pomba descendo, fogo e vento. Se não houver movimento, energia, excitação, amor profundo, serviço, perdão ou entrega, você pode ter certeza de que não está percebendo a presença do Espírito. Se toda a nossa vida está apenas passando pelos movimentos, se nunca há uma convicção profunda, não sentimos o Espírito presente. Faríamos bem em atiçar o dom que em nós já se encontra.

Deus não dá o Espírito de Deus para aqueles de nós que são dignos, porque nenhum de nós o é. Deus dá o Espírito de Deus desta maneira desperta para aqueles que o desejam. Nesta Festa de Pentecostes, simplesmente, queira! Confie nele. Saiba que você já tem.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Por que você pede o que já foi dado?”, homilia, 8 de junho de 2014. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/baptism-of-fire-and-spirit-2022-06-05/>.

5 de junho de 2022

Semana vinte e dois

Expandindo Nossa Visão

 

Círculos cada vez maiores*

(29 de maio de 2022)

O padre Richard descreve seu desenvolvimento espiritual como um “progresso de peregrino”, com Deus usando as circunstâncias de sua vida – particularmente seu ministério internacional e viagens – para expandir sua visão, coração e mente:

À medida que me movia em círculos cada vez maiores ao redor do mundo, a base sólida da tradição perene nunca mudou. Foram apenas as lentes, os critérios, o espaço interno e o escopo que continuaram a se expandir. Eu estava sempre sendo movido para uma maior diferenciação e pontos de vista mais amplos e, simultaneamente, para uma maior inclusão em minhas ideias, uma compreensão mais profunda das pessoas e um senso de justiça mais honesto. Deus sempre se tornou maior e me levou a lugares maiores. Se Deus podia “incluir” e permitir, então por que não eu? Se Deus me pediu para amar incondicional e universalmente, então ficou claro que Deus operava da mesma maneira.

Logo havia um mundo muito maior para mim do que os Estados Unidos e a Igreja Católica Romana, que acabei percebendo que também continha paradoxos. O e pluribus unum (“de muitos, um”) na cunhagem americana não incluía muitos de seus próprios povos (mulheres, BIPOC, pessoas LGBTQIA+, pessoas pobres, pessoas com deficiência e tantos outros). Como cristão, finalmente tive que ser romano ou católico, e continuo escolhendo o extremo católico desse espectro – lembre-se, católico significa universal. Ou Jesus é o “salvador do mundo” (João 4:42), ou ele não é, de forma alguma, um salvador. Ou a América trata o resto do mundo e seus próprios cidadãos democraticamente, ou realmente não acredita na democracia. É assim que eu vejo.

Mas esse lento processo de transformação e as realizações que vieram com ele não foram decisões do tipo “ou ... ou”; mas sim grandes realizações inclusivas que se aglutinavam. Nada disso aconteceu sem muita oração, dúvida, estudo e conversa. A jornada em si me levou a um profundo senso de santidade, liberdade e integridade. Embora eu não tenha pensado dessa maneira no início, agora espero e acredito que uma espécie de segunda simplicidade é o próprio objetivo da idade adulta madura e da religião madura.

Meu pequeno ponto de vista pessoal como referência central para qualquer coisa, ou para julgar corretamente qualquer coisa, gradualmente se desvaneceu à medida que a vida prosseguia. O próprio significado da palavra universo é “virar uma coisa”. Eu sei que não sou essa coisa. Existe uma Grande Verdade neste universo, e certamente não é a minha.

Religiões maduras, e agora alguns cientistas, dizem que estamos programados para a Grande Imagem, para a transcendência, para o crescimento contínuo, para a união com nós mesmos e tudo o mais. Ou Deus é para todos, e o DNA divino está de alguma forma em todas as criaturas, ou esse Deus não é Deus por nenhuma definição comum. Somos levados a níveis cada vez mais altos de união e capacidade de inclusão, mesmo que alguns de nós saiam chutando e gritando. “Tudo o que sobe deve convergir”, como disse Teilhard de Chardin. [1]

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Falling Upward: A Spirituality for the Two Half of Life (San Francisco: Jossey Bass, 2011), 107–109. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/ever-widening-circles-2022-05-29/>.

[1] Pierre Teilhard de Chardin, O Futuro do Homem, trad. Norman Denny (Nova York: Harper and Row, 1964), 192.

29 de maio de 2022

Semana vinte e um

Lutando com o Cristianismo

 

Reconstruindo de baixo para cima*

(22 de maio de 2022)

Por mais de cinquenta anos como padre franciscano, o Frei Richard Rohr trabalhou para despertar os cristãos para a mensagem radical e transformadora de Jesus. É uma mensagem que muitas vezes é distorcida pela cultura e até pela própria tradição cristã. Frei Richard reflete:

Nossa religião, infelizmente, não está sendo muito eficiente: sofrimento, medo, violência, injustiça, ganância e falta de sentido ainda abundam. Isso não está nem perto do reino de Deus que Jesus ensinou. E devemos ser francos: em seu comportamento e impacto sobre o mundo, os cristãos não são muito diferentes das outras pessoas.

Muitos dos cristãos não são pessoas altamente transformadas; em vez disso, eles tendem a refletir sua própria cultura mais do que operam como qualquer tipo de fermento dentro dela. Falo especialmente dos cristãos americanos, porque sou um. Mas se você é de outro país, olhe para os cristãos onde você mora e veja se o mesmo acontece.

Sejamos honestos: a religião provavelmente nunca teve uma imagem tão ruim. O cristianismo agora é visto como “irrelevante” por alguns, “tóxico” por muitos e, muitas vezes, como uma grande parte do problema e não como qualquer tipo de solução. Alguns de nós ficam quase envergonhados de dizer que somos cristãos por causa das imagens negativas que essa palavra evoca na mente dos outros. Os jovens, especialmente, ficam desanimados com o quão julgadora, excludente, impraticável e ineficaz a cultura cristã parece ser.

A maioria dos cristãos não foi ensinada a se conectar à “mente de Cristo”; assim, muitas vezes refletem a mente comum de poder, ganância e guerra. A mente dualista lê a realidade em binários simples — bom e ruim, certo e errado — e se considera inteligente porque escolhe um lado. Isso não está nos levando a lugar algum.

Ao longo da história do cristianismo, parece que o ensino de Jesus teve pouco impacto, exceto entre pessoas que se renderam a grande amor e grande sofrimento. Poderia este ser o verdadeiro núcleo do Evangelho? Essas pessoas experimentam Deus em vez de simplesmente ter ideias desconexas sobre Deus. Precisamos confiar na mente dos místicos agora para oferecer qualquer tipo de consciência alternativa - contemplativa ou não-dual. Precisamos de uma religião baseada na prática que nos ensine como nos conectar com o Infinito de maneiras que realmente nos mudem de nossas perspectivas finitas.

Devemos redescobrir o que São Francisco de Assis (1182-1226) chamou de “medula do Evangelho”. [1] É hora de reconstruir de baixo para cima. Se a base não for sólida e segura, tudo o que tentamos construir em cima dela é fraco e ineficaz. Talvez seja uma bênção disfarçada que tanta coisa esteja caindo ao nosso redor. É hora de começar de novo. No ano de 1205, Jesus falou a Francisco através da cruz de São Damião: “Francisco, reconstrua minha igreja, pois você vê que está caindo em ruínas”. Se o próprio Jesus diz que a igreja está caindo em ruínas, acho que podemos admitir isso também sem ser acusado de ser negativo ou incrédulo. Talvez tenhamos que admitir para que algo novo e bom aconteça.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, palestra não publicada, 3 de dezembro de 2016, no Canossian Spirituality Center, Albuquerque, Novo México. Disponível como download de CD, DVD e MP3. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/redeeming-our-religion-2022-05-22/>.

[1] Tomás de Celano, The Remembrance of the Desire of a Soul, capítulo 158. Ver Francis of Assisi: Early Documents, vol. 2, O Fundador (Hyde Park, NY: New City Press, 2000), 380.

22 de maio de 2022

Semana vinte

Desconhecimento

 

Humilde Saber*

(15 de maio de 2022)

O padre Richard Rohr começa as meditações desta semana enfatizando a importância da humildade em nosso conhecimento, reconhecendo tudo o que não sabemos sobre Deus, a Realidade e nós mesmos.

A Realidade Suprema não pode ser vista com nenhuma operação dual da mente que elimine o misterioso ou confuso — qualquer coisa assustadora, desconhecida ou fora de nossa zona de conforto. O pensamento dualista não é a presença nua da Presença, mas uma visão altamente controlada e limitada. Com esse software, não podemos acessar o infinito, Deus, graça, misericórdia ou amor - as coisas necessárias e importantes! Você não se juntaria a mim dizendo: “Eu não respeitaria nenhum Deus que eu pudesse descobrir?” Santo Agostinho de Hipona (354-430) disse o mesmo: “Se você entende, então não é Deus”. [1]

O próprio Jesus consistentemente honrou e permitiu o Mistério. Muitos dos ditos de Jesus são tão enigmáticos e confusos que estou convencido de que é por isso que a maioria dos católicos simplesmente evita ler a Bíblia. Se Jesus estava preocupado principalmente com a clareza perfeita do seu lado e certa compreensão do nosso lado, ele certamente não se saiu muito bem como comunicador, mesmo em vida. Felizmente, os protestantes insistiram em ler e estudar as Escrituras, mas depois se certificaram de que tinham a única interpretação e ignoraram muitas das outras! Isso, mesmo depois de Jesus tantas vezes (sete vezes apenas em Mateus 13) ter ensinado que a Realidade Suprema (que ele chama de “o reino”) é sempre como algo. Ele claramente oferece símiles e metáforas para convidar mais reflexão e jornada, não para impor um único entendimento.

Jesus se comunica amplamente por meio de parábolas, histórias, aforismos e muitas vezes enigmas profundamente obscuros (como “Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”, Mateus 22:14). Esse discurso não agrada aos pensadores sistemáticos. Se eu tivesse entregado trabalhos tão abertos a mal-entendidos, falsas interpretações e até heresias como a maioria dos ensinamentos de Jesus, eu nunca teria passado em meus cursos de teologia. Ele não poderia ter se preocupado com palavras exatas, ou teria aprendido a falar grego, em vez do aramaico filosoficamente impreciso e muito diferente!

A religião saudável é sempre humilde sobre sua própria santidade e conhecimento. Ela sabe que não sabe. A verdadeira noção bíblica de fé, que equilibra o saber com o não saber, é bastante rara hoje, especialmente entre muitos religiosos que pensam que a fé é certeza o tempo todo – quando a verdade é exatamente o oposto. Quem realmente sabe também sabe que não sabe nada.

Temos que nos lembrar constantemente de que não sabemos. Os budistas chamam essa postura de “mente de principiante”. Imagine como nossa política e nossas igrejas poderiam mudar se tivéssemos esse tipo de humildade em nossas conversas. Simplesmente não parece mais possível. Tanto a política quanto a religião estão cheias de pessoas agarradas a certezas em todos os lados de todas as questões. Isso torna a conversa civilizada e humana praticamente impossível porque não há humildade. Não há abertura para o mistério como sendo aquilo que está sempre se revelando. Mistério não é aquilo que não é compreensível. Mistério é aquilo que é infinitamente compreensível.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, The Naked Now: Learning to See as Mystics See (Nova York: Crossroad Publishing, 2009), 74–75; Just This (Albuquerque, NM: CAC Publishing, 2017), 85–86; e Seguindo os místicos através do portão estreito: vendo Deus em todas as coisas (Albuquerque, NM: Center for Action and Contemplation, 2010). Disponível como download de CD, DVD e MP3. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/humble-knowing-2022-05-15/>.

[1] Agostinho, Sermão 117:5 (em João 1:1). Texto original: “Si enim comprenisis, non est Deus”.

15 de maio de 2022

Semana dezenove

Escuridão Luminosa, Amor Aprofundado

 

Sedução Mística*

(8 de maio de 2022)

No novo livro de Mirabai Starr, Saint John of the Cross: Luminous Darkness (São João da Cruz: Escuridão Luminosa), ela destaca quatro temas principais encontrados nos escritos de João da Cruz (1542-1591): saudade, silêncio, desconhecimento e amor. As meditações desta semana se concentram nesses quatro temas místicos duradouros. Começamos com uma reflexão do Padre Richard sobre sua própria experiência de Deus:

O amor divino-humano é realmente uma dança recíproca. Às vezes, para darmos um passo à frente, o outro parceiro deve se afastar um pouco. A retirada é apenas por um momento, e seu objetivo é nos puxar para ele ou ela – mas não parece assim no momento. Parece que nosso parceiro está recuando. Ou apenas parece sofrimento.

Deus também cria o recuo, “escondendo seu rosto”, como era chamado por tantos místicos e escrituras. Deus cria um vácuo que somente Deus pode preencher. Então Deus espera para ver se confiaremos em nosso parceiro (Deus) para eventualmente preencher o espaço em nós, que agora se tornou ainda mais espaçoso e receptivo. Este é o tema central da escuridão, dúvida necessária, ou o que os místicos chamavam de “a retirada do amor de Deus”. Eles sabiam que o que parece sofrimento, depressão, inutilidade – momentos em que Deus se retira – muitas vezes são atos profundos de confiança e convite à intimidade por parte de Deus. Na jornada interior da alma encontramos um Deus que interage com o nosso eu mais profundo, que faz crescer a pessoa, permitindo e perdoando os erros. É precisamente esse dar e receber, e saber que haverá um dar e receber, que torna Deus tão real como um Amante.

A experiência do místico Pierre Teilhard de Chardin do século XX ecoa a de João da Cruz quatro séculos antes:

Deus não se oferece aos seres finitos como algo completo e pronto para ser abraçado. Para nós, Deus é descoberta e crescimento eternos. Quanto mais pensamos que entendemos Deus, mais Deus se revela de outra forma. Quanto mais pensamos que seguramos Deus, mais Deus se retrai, atraindo-nos para as profundezas de Si mesmo. [1]

Padre Ricardo conclui:

Devo ser honesto com você aqui sobre minha própria vida. Nos últimos dez anos, tive pouco “sentimento” espiritual, nem consolo nem desolação. Na maioria dos dias, tive que simplesmente escolher acreditar, amar e confiar. Nisso, sei que estou em boa companhia com Teilhard, João da Cruz, Madre Teresa e inúmeros outros místicos e santos, e talvez alguns de vocês.

Mas Deus me recompensa por deixar Deus me recompensar:

Este é o duplo passo divino que chamamos de graça:

Eu estou fazendo isso, mas, ao mesmo tempo, não estou fazendo isso;

Está sendo feito para mim, e, ao mesmo tempo, também por mim.

No entanto, Deus sempre assume a liderança na dança, que só reconhecemos com o tempo.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, The Universal Christ: How a Forgotten Reality Can Change Everything We See, Hope for, and Believe (New York: Convergent, 2019, 2021), 78–79. Disponível em <https://cac.org/daily-meditations/mystical-allurement-2022-05-08/>.

[1] Pierre Teilhard de Chardin, The Divine Milieu: An Essay on the Interior Life (Nova York: Harper and Brothers, 1960), 119. Nota: algumas mudanças feitas para a linguagem inclusiva.

8 de maio de 2022

Semana dezoito

Espiral da violência

 

A raiz da violência*

(1 de maio de 2022)

Em uma conferência com o monge trapista Thomas Keating, o padre Richard Rohr considerou a contemplação como um antídoto para a violência:

A raiz da violência é a ilusão da separação – de Deus, do próprio Ser e de ser um com tudo e todos. Quando não sabemos que estamos conectados, invariavelmente recorremos a alguma forma de violência para obter a dignidade e o poder que nos falta. A contemplação da mensagem do evangelho gradualmente nos treina a não dar tanta importância às diferenças, mas a retornar a quem somos - nosso Verdadeiro Eu em Deus - que está sempre além de qualquer nacionalidade, religião, cor da pele, gênero, sexualidade ou quaisquer outros possíveis rótulos. Na verdade, finalmente podemos ver que esses são sempre e apenas rótulos comerciais, cobrindo o rico produto existente e escondido.

Quando pudermos nos tornar pequenos o suficiente, nus o suficiente e honestos o suficiente, então, ironicamente, descobriremos que somos mais do que suficientes. Neste lugar de pobreza e liberdade, não temos nada a provar e nada a proteger. Aqui podemos nos conectar com tudo e com todos. Isso corta a violência em suas raízes, antes mesmo que haja uma base para o medo ou a ganância - as coisas que geralmente nos fazem ficar com raiva, desconfiados e violentos.

Para ser claro, é inconcebível que um verdadeiro cristão seja racista, antissemita, xenófobo, homofóbico ou preconceituoso em relação a qualquer grupo ou indivíduo, especialmente em relação aos pobres e vulneráveis, o que parece ser um preconceito americano aceitável. Para acabar com o ciclo de violência, nossas ações devem fluir de nossa identidade autêntica como Amor.

Uma das razões pelas quais fundei o Centro de Ação e Contemplação foi dar aos ativistas alguma base na espiritualidade para que pudessem continuar trabalhando pela mudança social, mas com uma postura muito diferente da vingança, ideologia ou força de vontade pressionando contra a força de vontade. A maioria dos ativistas que eu conhecia adorava os ensinamentos de Gandhi e Martin Luther King Jr. sobre a não violência. Mas ficou claro para mim que muitos deles tinham apenas uma apreciação intelectual, e não uma participação no mistério muito mais profundo. O ego ainda estava no comando, e muitas vezes vi pessoas gerando vítimas por não serem como elas. Ainda era um jogo de poder, não a ciência do amor que Jesus nos ensinou.

Quando começamos a nos conectando com nossa experiência interior de comunhão em vez de separação, nossas ações podem se tornar puras, claras e firmes. Esse tipo de ação, enraizada no Eu Verdadeiro, vem de um conhecimento mais profundo do que é verdadeiramente real, bom e belo, indo além dos rótulos e julgamentos dualistas de certo ou errado. A partir deste lugar, nossa energia é positiva e tem o maior potencial para criar mudanças para o bem. Essa postura é precisamente o que queremos dizer com “estar em oração”. Devemos orar “incessantemente” para manter essa postura. É um processo ao longo da vida.

Esperemos em oração, mas não esperemos por uma motivação absolutamente perfeita, caso contrário, nunca agiremos. A união radical com Deus e com o próximo deve ser nosso ponto de partida, não a perfeição privada.

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(*) Adaptado de Richard Rohr e Thomas Keating, Healing Our Violence through the Journey of Centering Prayer (Cincinnati, OH: Saint Anthony Messenger Press, 2002), CD. Disponível em <https://cac.org/the-root-of-violence-2022-05-01/>.

1 de maio de 2022

Semana dezessete

Uma Realidade Sacramental

 

O Princípio Sacramental*

(24 de abril de 2022)

Padre Richard Rohr introduz o coração da teologia sacramental, que nossas circunstâncias particulares e ordinárias são os lugares onde encontramos o Cristo Universal:

Cada história da ressurreição encontrada nos Evangelhos afirma uma presença ambígua – mas certa – do Cristo Ressuscitado em ambientes muito comuns, como caminhar na estrada de Emaús com estranhos, assar peixe na praia ou parecer um jardineiro para Maria Madalena. Esses momentos da Escritura estabelecem um cenário de expectativa e desejo de que a Presença de Deus possa ser vista no ordinário e no material, e não tenhamos que esperar por aparições sobrenaturais. Nós católicos chamamos isso de teologia sacramental, onde o visível e o tátil são a porta principal para o invisível. É por isso que cada um dos sacramentos formais da Igreja utiliza um elemento material como água, óleo, pão, vinho, a imposição de mãos ou a própria fisicalidade do casamento.

Quando Paulo escreveu as cartas a Colossos (1:15-20) e Éfeso (1:3-14), cerca de vinte anos após a era de Jesus, ele já havia conectado o corpo único de Jesus com o resto da espécie humana (1 Coríntios 12:12-31), com os elementos individuais simbolizados pelo pão e vinho (1 Coríntios 11:23-26), e com todo o Cristo da história cósmica e da própria natureza (Romanos 8:19-23). Essa conexão é posteriormente articulada no Prólogo do Evangelho de João (escrito décadas depois das cartas de Paulo) quando o autor diz: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens;” (João 1:1-4), tudo fundamentado no Logos se tornando carne (1:14).

A mensagem central da encarnação de Deus em Jesus é que a Presença Divina está aqui, em nós e em toda a criação, e não apenas “ali” em algum reino distante. Os primeiros cristãos passaram a chamar essa Presença aparentemente nova e disponível de “Senhor e Cristo” (Atos 2:36).

O princípio sacramental é este: comece com um momento concreto de encontro, baseado neste mundo físico, e a alma se universaliza a partir daí, para que o que é verdadeiro aqui se torne verdadeiro também em todos os outros lugares. E assim a jornada espiritual prossegue com círculos cada vez maiores de inclusão no Único Mistério Sagrado! Mas sempre começa com o que muitos sabiamente chamam de “escândalo do particular”. É aí que devemos nos render, mesmo que o objeto em si pareça mais do que um pouco indigno de nossa admiração, confiança ou entrega. A forma mais pura de espiritualidade é encontrar Deus no que está bem à sua frente – a capacidade de aceitar o que o jesuíta e místico francês Jean Pierre de Caussade (1675-1751) chamou de sacramento do momento presente. [1]

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(*) Adaptado de Richard Rohr, The Universal Christ: How a Forgotten Reality Can Change Everything We See, Hope for, and Believe (Nova York: Convergent, 2019, 2021), 29–31; e Just This (Albuquerque, NM: CAC Publishing, 2017), 32. Disponível em <https://cac.org/the-sacramental-principle-2022-04-24/>.

[1] Jean Pierre de Caussade, Abandono à Divina Providência, livro 1, capítulo 1.2.

24 de abril de 2022

Semana dezesseis

A Ressurreição

 

Uma festa de esperança*

(17 de abril de 2022)

Na homilia oferecida no domingo de Páscoa de 2019, o padre Richard Rohr compartilhou a boa notícia da ressurreição:

O escritor e jornalista brasileiro Fernando Sabino (1923–2004) escreveu: “No final, tudo vai dar certo. Se não estiver [tudo bem], não é o fim.” [1] É disso que se trata hoje: “Tudo ficará bem no final”.

A mensagem da Páscoa não é principalmente uma mensagem sobre o corpo de Jesus, embora tenhamos sido treinados para limitá-la a esse único “milagre”. Fomos educados a esperar um Jesus solitário e ressurreto dizendo: “Eu ressuscitei dos mortos; olhe para mim!" Receio que seja por isso que muitas pessoas, mesmo os cristãos, não parecem ficar muito empolgados com a Páscoa. Se a mensagem não nos incluir de alguma forma, os humanos não tendem a se interessar tanto por teologia. Deixe-me compartilhar o que para mim é a verdadeira mensagem: toda mensagem sobre Jesus refere-se a todos nós, à humanidade. Infelizmente, a igreja ocidental, na qual a maioria de nós foi criada, enfatizou a ressurreição individual de Jesus. Foi um milagre que não pudemos provar nem experimentar, mas que ousamos acreditar.

Porém, há um grande segredo, pelo menos para os cristãos ocidentais, que vem se limitando à outra metade da igreja universal. Na Igreja Ortodoxa Oriental - em lugares como Síria, Turquia, Grécia e Egito - a Páscoa geralmente não é pintada com um Jesus solitário ressuscitando dos mortos. Ele está sempre cercado por uma multidão de pessoas – tanto com auréola quanto sem. Na verdade, nos ícones tradicionais, ele está tirando as pessoas do Hades. Hades não é o mesmo que inferno, embora tenhamos vinculado as duas palavras, e assim crescemos recitando o credo de que “Jesus desceu ao inferno”.

Em vez disso, Hades é simplesmente o lugar dos mortos. Não há punição ou julgamento envolvido. É exatamente onde uma alma espera por Deus. Mas negligenciamos essa interpretação. Assim, a Igreja Oriental provavelmente estava muito mais próxima da verdadeira ressurreição como sendo uma mensagem sobre a humanidade. É uma mensagem sobre a história. É uma mensagem corporativa e inclui você, eu e todos os outros. Se isso não for verdade, não é de admirar que basicamente perdemos o interesse.

Hoje é a festa da esperança, direção, propósito, significado e comunidade. Estamos juntos nessa. O cinismo e a negatividade em que nosso país e muitos outros países caíram mostram um exemplo claro do que acontece quando as pessoas não têm esperança. Se no todo não houver esperança, individualmente nós também a perderemos. A Páscoa é o anúncio de uma esperança comum. Quando cantamos no hino pascal que Cristo destruiu a morte, isso significa a morte de todos nós. Não é apenas sobre Jesus; é à humanidade que Deus promete: “A vida não acabou, apenas muda”, como dizemos na liturgia fúnebre. Foi isso que aconteceu em Jesus, e é isso que vai acontecer em nós. No final, tudo ficará bem. A história é definida em uma tangente inerentemente positiva e esperançosa.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “Tudo ficará bem no final”, homilia, 21 de abril de 2019. Disponível em <https://cac.org/a-feast-of-hope-2022-04-17/>.

[1] Tradução de Fernando Sabino, No fim dá certo: Se não deu, é porque não chegou ao fim (São Paulo: Record, 1998).

17 de abril de 2022

Semana quinze

Um amor que se entrega

 

Permitindo que a vida cresça e diminua*

(10 de abril de 2022)

Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens. —Filipenses 2:6–7

As meditações desta semana focam um amor de entrega, particularmente conforme modelado por Jesus. O padre Richard Rohr reflete sobre o caminho intencional de descendência de Jesus:

No transbordamento dos ricos temas do Domingo de Ramos, vou nos direcionar para o grande movimento parabólico descrito em Filipenses 2. A maioria considera que este era originalmente um hino cantado na comunidade cristã primitiva. Para nos dar uma honesta introdução, trago uma citação de mudança de vida proveniente das Reflexões Psicológicas de C. G. Jung (1875-1961):

Na hora secreta do meio-dia da vida inverte-se a parábola, nasce a morte. A segunda metade da vida não significa ascensão, desdobramento, aumento, exuberância, mas morte, pois o fim é sua meta. A negação da realização da vida é sinônimo de recusa em aceitar seu fim. Ambos significam não querer viver, e não querer viver é idêntico a não querer morrer. Crescente e minguante fazem uma curva. [1]

O artístico hino de Filipenses, com honestidade e ousadia, descreve aquela “hora secreta” a que Jung se refere, quando Deus em Cristo inverteu a parábola, quando o crescente se tornou minguante. Diz que começa com o grande auto esvaziamento ou kenosis que chamamos de Encarnação e termina com a Crucificação. Ele brilhantemente conecta os dois mistérios como um movimento, para baixo, para baixo, para baixo na encarnação da criação, nas profundezas e tristezas da humanidade, e em uma identificação final com aqueles que estão no fundo (“tomou a forma de um escravo”, Filipenses 2 :7). Jesus representa a total solidariedade de Deus e até mesmo o amor pela situação humana, como se dissesse: “nada humano é abominável para mim”. Deus, se Jesus está certo, escolheu descer – em quase total contraponto com nossa humanidade que está sempre tentando escalar, alcançar, realizar e provar a si mesma.

Este hino diz que Jesus deixa a ascensão para Deus, à maneira de Deus e no tempo de Deus. A maioria de nós, compreensivelmente, começa a jornada assumindo que Deus está “lá em cima”, e nosso trabalho é transcender este mundo para encontrá-lo. Passamos tanto tempo tentando chegar “lá em cima”, que perdemos que o grande salto de Deus em Jesus foi vir “aqui”. Que liberdade! E isso acontece melhor do que qualquer um poderia esperar. “Por causa disso, Deus o levantou” (Filipenses 2:9). Chamamos essa elevação de ressurreição ou ascensão. Jesus é estabelecido como o modelo humano, o padrão no céu, o padrão tão esperançoso da transformação divina.

Confie no baixo, e Deus cuidará do alto. Isso deixa a humanidade solidária com o ciclo de vida, mas também uns com os outros, sem necessidade de criar histórias de sucesso para nós mesmos ou criar histórias de fracasso para os outros. A humanidade em Jesus é livre para ser humana e com alma, em vez de qualquer falsa ascensão ao “Espírito”. Isso deveria mudar tudo, e acredito que ainda mudará.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Encontros Maravilhosos: Escrituras para a Quaresma (Cincinnati, OH: St. Anthony Messenger Press, 2011), pp. 122–124. Disponível em <https://cac.org/allowing-life-to-wax-and-wane-2022-04-10/>.

[1] C. G. Jung: Psychological Reflections: A New Anthology of His Writings, 1905–1961, ed. Jolande Jacobi (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1970), 323.

10 de abril de 2022

Semana quatorze

Ninguém pode ser salvo sozinho

 

O pecado e a salvação são coletivos*

(3 de abril de 2022)

No dia seguinte, João Batista viu Jesus vindo em sua direção e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” —João 1:29

O padre Richard Rohr prega uma homilia sobre a natureza coletiva da salvação e do pecado:

Estou convencido de que Deus está salvando a história. Deus está salvando a humanidade. Deus salva o todo, não apenas as partes. Um grande erro de interpretação da Bíblia é pensar que Deus salva indivíduos separados uns dos outros. Esse não pode ser o significado completo da salvação. A verdadeira mensagem coletiva está escondida à vista de toda a Bíblia.

Toda proclamação de salvação nas Escrituras Hebraicas é coletiva. No livro de Isaías, Deus promete levantar todas as tribos de Jacó e restaurar todos os sobreviventes de Israel, para que “a minha salvação chegue até os confins da terra” (Isaías 49:6). Este é o primeiro derramamento da noção de que a mensagem de Deus era para o todo – história, sociedade, humanidade. Todos são salvos. Esse uso é tão constante em toda a Bíblia que deixamos de notá-lo. Todos vieram de Deus. Tudo então exemplifica o mistério de Deus, e então tudo (apesar de seu valor ou indignidade) é levado de volta a Deus! Somos salvos porque estamos conectados – não porque somos dignos.

Quando o ministério de Jesus começa, João o chama de “Cordeiro de Deus”. Não é isso que a história esperava. Esperávamos um Leão de Deus — um Deus todo-poderoso e onipotente que resolvesse todos os problemas. Em vez disso, o Cordeiro de Deus é aquele que é vulnerável e impotente, que é levado e absorvido em qualquer história que se desenrola. Isso é o que significa o Cordeiro de Deus que perdoa o “pecado” do mundo. Observe, não são “pecados”, como em muitos. É singular, “pecado”. Assim como a salvação é uma realidade coletiva, o mal também é. É sempre coletivo. Deus perdoa ao se encarnar. Se Deus se torna um ser humano, então é bom ser humano! A encarnação já é redenção.

Da mesma forma, somos todos cúmplices. Somos todos cooperativos na estupidez e maldade da história humana. Ninguém pode se levantar e dizer: “Eu não fiz nada de errado”. Como Paulo diz tão claramente: “Todos pecaram” (Romanos 3:23), então todos nós carregamos o fardo do pecado. É um desperdício do tempo de Deus – e do nosso próprio – tentar provar quem é mais digno, mais santo, mais inocente. Pare de tentar ser melhor do que outra pessoa! Esqueça! Tudo o que faz é nos tornar egocêntricos.

Eu realmente acho que o próprio cristianismo não será reformado até que sua proclamação básica ao mundo seja que suportemos o “peso da glória” (2 Coríntios 4:17) como um coletivo. Paulo chamou esse mistério coletivo de “Corpo de Cristo”. Temos que carregar o todo. É por isso que nosso sacramento central é a Comunhão, uma refeição compartilhada e uma mesa compartilhada. Mais importante do que estar correto é estar em comunhão, reunido em um. Se não sentirmos o peso retirado de nossas costas por essa mensagem, não estamos realmente ouvindo.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, “O pecado é coletivo e a salvação é coletiva”, homilia, 19 de janeiro de 2020. Disponível em <https://cac.org/ sin-and-salvation-2022-04-03/>.

3 de abril de 2022

Semana treze

Não tenha medo

 

O medo é contração*

(27 de março de 2022)

O padre Richard Rohr localiza a fonte primária de nossos medos em nosso pequeno ou falso “eu”, que é incapaz de confiar no amor de Deus que infunde toda a realidade.

O medo une as partes díspares de nossos falsos “eus” muito rapidamente. O ego avança por contração, autoproteção e recusa, dizendo não. A contração nos dá foco, propósito, direção, superioridade e um estranho típico de segurança. Ela pega nossa ansiedade sem objetivo, encobre-a e tenta transformá-la em propósito e urgência, o que resulta em uma espécie de impulso. Mas esta unidade não é pacífica ou feliz. Ela está cheia de medo e localiza todos os seus problemas como estando “lá fora”, nunca “aqui dentro”.

A alma ou o Verdadeiro “Eu” não procede por contração, mas por expansão. Ela avança, não por exclusão, mas por inclusão. Ela vê as coisas de maneira profunda e ampla, não dizendo não, mas dizendo sim, pelo menos em algum nível, para o que quer que surja em seu caminho. Você consegue distinguir entre esses dois movimentos muito diferentes dentro de você?

O medo e a contração nos permitem eliminar outras pessoas, descartá-las, excluí-las e de alguma forma expulsá-las, pelo menos em nossas mentes. Isso imediatamente nos dá a sensação de estar no controle e ter um conjunto seguro de limites – até mesmo limites sagrados. Mas as pessoas que estão nesse falso controle geralmente têm medo de perder alguma coisa. Se nos aprofundarmos em nós mesmos, veremos que há um rebelde e um ditador em todos nós, dois extremos diferentes do mesmo espectro. É quase sempre o medo que justifica nossa rebelião instintiva ou nossa necessidade de dominar – um medo que quase nunca é reconhecido como tal porque estamos agindo e tentando controlar a situação.

O autor Gareth Higgins descreve a passagem do “não” do medo para o “sim” do amor:

Olhe abaixo do seu medo e você descobrirá com o que você realmente se importa. O que você deseja proteger: pessoas, lugares, coisas, esperanças, sonhos. Agressão, vergonha e desconexão – mesmo que tentativas de fazer uma vida melhor para mim ou um mundo melhor para todos nós – não funcionam. Mas à medida que expandimos nosso círculo de cuidado para incluir todas as pessoas, todos os lugares, toda a criação, descobrimos que nossos medos são compartilhados e que todos os nossos cuidados vêm do mesmo lugar. Venha entender o seu medo, e você pode descobrir que todos nós estamos apenas tentando descobrir como amar. [1]

 

Padre Ricardo continua:

 

A menos que haja alguém para nos segurar e acompanhar nessas jornadas interiores, grande parte da humanidade não pode ir muito fundo. Se ao menos soubéssemos quem encontraríamos lá e pudéssemos dizer, com Santa Catarina de Gênova (1447-1510): “Meu eu mais profundo é Deus!” [2] Sem esse acompanhamento, a maioria de nós permanecerá na superfície de nossas próprias vidas, onde a mesquinhez nos impede de ser incomodados pelos outros. No entanto, com o acompanhamento divino, literalmente “encontraremos nossas almas” e Aquele que amorosamente habita lá.

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(*) Adaptado de Richard Rohr, Dancing Standing Still: Healing the World from a Place of Prayer (Nova York: Paulist Press, 2014), 66–69. Disponível em <https://cac.org/fear-is-contraction-2022-03-27/>.

[1] Gareth Higgins, Como não ter medo: sete maneiras de viver quando tudo parece aterrorizante (Minneapolis, MN: Broadleaf Books, 2021), 34

[2] Catarina de Gênova, Vita, capítulo 15

27 de março de 2022

Semana doze

O místico incompreendido

 

Uma experiência esclarecedora*

(20 de março de 2022)

Nas Meditações Diárias desta semana, o padre Richard Rohr se concentra em São Paulo como um místico, começando com o encontro transformador de Paulo com o Cristo Ressuscitado:

Paulo é provavelmente um dos professores mais incompreendidos e odiados da Igreja. Acho que isso ocorre em grande parte porque tentamos entender um místico não-dual com nossas mentes simplistas e dualistas.

Começa com a incrível experiência de conversão de Paulo, descrita três vezes no livro de Atos (capítulos 9, 22 e 26). Os estudiosos supõem que Lucas escreveu Atos por volta de 85 EC, cerca de vinte anos após o ministério de Paulo. O próprio relato de Paulo está em sua carta aos Gálatas: “O Evangelho que eu prego . . . veio por revelação de Jesus Cristo” (1:11–12). Paulo nunca duvida dessa revelação. O Cristo que ele conheceu não era exatamente idêntico ao Jesus histórico; foi o Cristo ressuscitado, o Cristo que permanece conosco agora em Espírito como o Cristo Universal.

Em Gálatas, Paulo descreve sua vida pré-conversão como um judeu ortodoxo, um fariseu com status no conselho governamental da Judéia chamado Sinédrio. A polícia do Templo o delegou para sair e esmagar esta nova seita do Judaísmo chamada “O Caminho” – ainda não chamada de Cristianismo. Saulo (nome hebraico de Paulo) estava respirando ameaças de matar os discípulos de Jesus (ver Atos 9:1–2). Ele diz: “Eu tentei destruí-lo. E fui além de meus contemporâneos em minha própria nação. Eu era mais zeloso pelas tradições de meus pais do que qualquer outro” (Gálatas 1:13–14). Nesse ponto, Paulo era um pensador dualista, dividindo o mundo em pessoas inteiramente boas e inteiramente más.

O relato de Atos sobre a conversão de Paulo continua: “De repente, enquanto viajava para Damasco, pouco antes de chegar à cidade, veio uma luz do céu ao redor dele. Ele caiu no chão e ouviu uma voz que dizia: 'Saulo, Saulo, por que você me persegue?' Ele perguntou: 'Quem é você, Senhor?' A voz respondeu: 'Eu sou Jesus, a quem você persegue'” (Atos 9:3-5).

Paulo deve ter se perguntado: “Por que ele diz ‘eu’ quando estou perseguindo essas outras pessoas?” Essa escolha de palavras é fundamental. Paulo gradualmente chega à sua compreensão do Corpo de Cristo (1 Coríntios 12:12-13) como uma união orgânica e ontológica entre Cristo e aqueles a quem Cristo ama – o que Paulo finalmente percebe que é tudo e todos. É por isso que Paulo se torna “o apóstolo para as nações” (ou “gentios”).

 

Essa experiência esclarecedora ensinou a Paulo a consciência não-dual, a mesma mente mística que permitiu que Jesus dissesse coisas como “Tudo o que fizerdes a estes pequeninos, fazeis a mim” (Mateus 25:40).

 

Até que a graça alcance a mesma vitória em nossas mentes e corações, não podemos realmente compreender a maioria dos ensinamentos de Jesus e de Paulo – de maneira prática. Permanecerá como um distante dogma teológico. Antes da conversão, tendemos a pensar em Deus como “lá fora”. Após a transformação, como escreveu Teresa de Ávila (1515-1582), “A alma . . . nunca duvide: Deus estava nela; ela estava em Deus.” [1]

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(*) Adaptado de Richard Rohr, St. Paul: The Misunderstood Mystic (Albuquerque, NM: Center for Action and Contemplation, 2014). Disponível em CD e download em MP3. Disponível em <